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sábado, 20 de novembro de 2010

Conversa com Caio (Parte 3)


NM – Como você recebeu a indicação de seu livro Trapiá para o vestibular da Universidade Federal do Ceará e como se sente com a 4ª edição de O sal da terra? Para nós, seus amigos, admiradores, leitores, sua obra merece muito mais que indicações para concursos e reedições. Você se sente pouco prestigiado? É assim mesmo? Um dia reconhecerão o seu imenso valor?


Caio – Não sei nem como de fato lhe responder. Há muitos prós e contras. Dou alguns rápidos exemplos. O romance O sal da terra está com duas adaptações para o cinema. Esteve a ponto de ser filmado. E não foi. Está com tradução pronta para o francês e ainda não publicado na França, embora já tenha saído na Itália e Líbano. O meu livro de contos O Casarão, que ganhou o Jabuti de 1975, da Câmara Brasileira do Livro, esteve a ponto de ganhar o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Houve indecisão entre os jurados durante vários dias e perdi por um voto. Em compensação, o meu livro de contos Os meninos e o agreste, que ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1971, ficou empatado com o livro da filha do Guimarães Rosa, Vilma Rosa, autora de Acontecências. Tristão de Ataíde, depois de dias, desempatou a meu favor. E assim muitos outros balanceios. Quando o Trapiá foi indicado para o Curso de Letras da Universidade do Ceará, claro que fiquei satisfeito. E fiquei mais ainda quando ele foi indicado no ano seguinte e alguns contos dele estão sendo filmados no Ceará. Então, meu amigo, quem se mete com letras passa por essas coisas. Vou lhe dizer uma, e não é modéstia: é meu feitio. Nunca me promovi nem lutei para conseguir alguma coisa nas Letras. O que veio recebi com agrado, mas sem exaltação, sem euforia, e não me pergunte por que... Nunca cogitei de entrar para uma Academia, embora pertença a uma Academia de Letras de Brasília, fundada por Almeida Fischer, ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ao Pen Club, a uma Academia em Buenos Aires (e nunca fui lá)... e sócio-correspondente da Academia Cearense de Letras. É uma questão de temperamento. Se me oferecerem, muito bem. Do contrário, não perderei o sono. O que vale é que tenho amigos valorosos no País inteiro que, por um motivo ou outro, gostam do que escrevo. O resto, meus livros dirão por si no futuro. Mais só uma coisinha: o meu conto "O pato do Lilico", do livro Trapiá, está em 14 antologias de contos e sempre me pedem para publicar em outras. Vou acrescentar uma coisa que me agrada: fiz a apresentação de aproximadamente uns 300 livros e não fiquei rico. Se eu tocasse rock a conversa seria diferente. Sou muito apegado às minhas raízes. Estou em São Paulo há pouco mais de 50 anos e já voltei ao Ceará umas 90 vezes. Em breve estarei retornando à terrinha.

NM – Creio que tocamos nos pontos essenciais. Podemos dar por encerrada a entrevista. Porém, deixo com você o ponto final. Tem algo a dizer mais? Fique à vontade.

Caio – Creio que falei até demais, eu que sou sucinto em tudo, a não ser em bate-papos.
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Conversa com Caio (Parte 2)


NM – Depois de longos anos de leituras e escrituras (fale de suas primeiras leituras e também de suas primeiras experiências como "criador"), você se sente mais próximo do sonho (ou não era sonho?) ou todo caminho é o mesmo?: poeira, arbustos aos lados, céu nublado aqui, sem nuvens adiante, solidão. O homem se contenta com a solidão? Ou o escritor menos que o homem que apenas passa?


Caio – Creio que o escritor é um grande solitário. Não a solidão que se anula em si mesma. A outra, indefinível e talvez meio cósmica, que leva o escritor a escrever e outros se voltam às demais Artes. Eu, de minha parte, comecei muito cedo. E – curioso – desde muito jovem eu desenhava razoavelmente. Deixava perplexos os professores do primário e do seriado, no Liceu do Ceará. Intuitivamente, eu tinha muita noção de perspectiva. Um dia, no primeiro ano do seriado (hoje ginásio), o professor de desenho mandou que desenhássemos uma garrafa. Fui o único que desenhou a sombra da garrafa. Ele me perguntou quem me ensinou aquilo. Eu lhe disse que ninguém. Mas desviei-me para a escrita porque eu lia muito. Comecei escrevendo crônicas e poesias. Empolguei-me tanto que escrevi um romance em cadernos. Ainda os possuo. Eu tinha os meus 13 ou 14 anos. Li muito os livros de Karl May sobre o Far-West. O meu herói dava de chinelo em Tarzan. Não parei mais, abandonando em definitivo o desenho. Escrever é o meu destino. É o destino de quem traz consigo os demônios interiores e luta com eles a vida inteira. Nem por isto deixei de viver a vida plenamente. Brinquei, dancei, namorei, tomei umas e outras etc... A literatura é a minha sombra, o meu contra-espelho, pulsação da minha alma... O homem não se contenta com a solidão referida. A solidão do escritor é aquela outra, ilocalizável e que nos acompanha como um anjo bom ou mau. O que lamento é ter abandonado o desenho. Talvez eu não chegasse a ser um Portinari, mas teria pintado alguns quadros. Visito e me deslumbro com tudo que para mim é belo ou esteticamente diferente. Extasio-me com a música popular ou erudita. Talvez eu tenha aquele mal de que falava o compositor Ataulfo Alves: buscar a Arte em tudo... Fazer o quê? Parar?... Aí, sim, cairia na solidão que se anula em si mesma e me tiraria o sentido da vida.

NM – Você disse que escrevia para você mesmo, desde o início, adolescente. E nunca jogou fora os primeiros escritos, que quase sempre são meros exercícios. O que você lia nesse tempo? Queria imitar algum desses escritores? E depois, quando se sentiu certo de que escrevia bem, continuou lendo? Quem ou o quê? Então lia para quê? Por curiosidade ainda? Por necessidade de aprender mais? Por hábito? E hoje, a maior da obra (a sua) realizada, ainda lê? Para quê? Por quê?

Caio – Eu lia tudo que caía às mãos. Dos gibis aos livros de aventuras. Mas nunca li as obras do Tarzan. E – curioso – nunca procurei imitar ninguém, sem buscar originalidade, porque ainda não tinha parâmetros críticos. Mas sempre busquei uma certa originalidade, dar uma marca pessoal ao que escrevia. Daí, talvez, as quantas tolices que escrevi. O primeiro trabalho que publiquei, aos meus 11 ou 12 anos, foi uma croniqueta – “Ave, Maria”, na revistinha dos padres sacramentinos da Igreja de São Benedito, de Fortaleza, onde eu estudava catecismo. O padre Teófilo publicou a baboseira. Tenho comigo guardada. Começa assim: “A Ave, Maria é uma bela oração, senão vejamos:” e transcrevi a oração em baixo e assinei o meu nome. O padre publicou com destaque e eu me julguei igual aos melhores escritores que eu conhecia. Daí porque os amigos, quando conto isto, dizem que eu sou plagiário desde que comecei... Desde muito jovem eu já lia os regionalistas de 30. Curiosamente, porém, maravilhei-me com as obras de Lúcio Cardoso e de Cornélio Penna, escritores voltados para os conflitos interiores e as solidões humanas. E eu era tão jovem. No Ceará empolguei-me com os livros do Fran Martins e acabei, muitos anos depois, escrevendo a apresentação para toda a obra dele, a pedido do Dr. Martins Filho, Reitor da Universidade Federal do Ceará e irmão dele.
Por que eu lia e leio? Creio que vou viver eternamente lendo. Talvez porque isto se tornou a minha própria sombra. José Mindlin, que possuía uma das maiores e raras bibliotecas particulares do Brasil, costumava me dizer que não viveria sem os livros. Volto a repetir: vivo a vida, mas me encanto sempre com o que se escreveu e se escreve do passado ao presente. Volto sempre aos escritores medievais. Talvez por isto bacharelei-me em História. Minha leitura é muito variada e diversificada. Leio muito poesia, comento livros de poesia, e poeta não sou... li escritores de toda a América Latina, os norte-americanos, portugueses, franceses, russos etc. Se eu tiver de destacar um nome apenas que me sirva de símbolo do que seja escrever, não deixarei de citar, como cito sempre, o Mestre Machado de Assis. Fico por aqui.

NM – E ler-se? Você se lê? Faz modificações nos seus livros publicados? Ou, quando os publica, os considera definitivos? Dizem que Murilo Rubião escreveu pouco (pode ter escrito muito e publicado pouco), apesar de ter vivido muito, e suas poucas obras (contos) são as mesmas, com títulos diferentes. Reescrevia tanto que conseguia transformar um conto em outro. Você é mais pródigo (esbanjador de imaginação) e menos exigente?

Caio – Leio-me muito pouco. Talvez por medo. Sempre que me releio encontro coisas a modificar. Então deixo como está. De todos os meus livros reeditados, modifiquei pouquíssimas frases. Sigo aquilo que sempre afirmo: O livro é daquele instante e daquele tempo. Daí porque, ainda hoje, insisto com o poeta Francisco Carvalho para publicar os dois primeiros livros dele, que ele os considera muito fracos e tirou-os da relação das suas obras publicadas. Acho que não é por aí... Agora: é uma opinião pessoal. Leio e releio muito o que escrevo, mas antes de publicá-los. Há outros que se comportam diferente: Não se conformam nunca com o que escreveu e ficam modificando e modificando. Para mim isto artificializa um pouco a criação. O grande novelista Aníbal Machado, em cada edição do único livro dele acrescentava mais uma novela e fazia uma limpeza nas anteriores. Eis por que há escritores que publicam pouco e sofrem muito no ato da criação. Também não sou relaxado. Quando não gosto de um conto que escrevi, guardo-o na gaveta e vou relê-lo bem depois. Às vezes surgem reformulações novas e reescrevo o conto. Outras vezes não: permanece na gaveta. Mas publiquei, acabou. Parto para outra. Agora mesmo estou reeditando a 4ª edição do meu romance O sal da terra. A editora me pediu que o lesse e fizesse as modificações que quisesse. Li-o todo e tirei quatro ou cinco palavras. Sabe por quê? Eu não quis modificar o tempo em que foi criado. Sou exigente comigo mesmo. Mas um livro é um tempo e um momento criador.

(continua)