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terça-feira, 30 de novembro de 2010

A espera da vez e a vez (Cunha de Leiradella)

(Do livro Fractal em duas línguas)
Ontem, como sempre, fui ao Derby. Não gosto do Derby, mas vou lá todas as noites. As pessoas que conheço estão sempre viajando ou, se estão em casa, estão dormindo ou têm visitas. Por isso, vou ao Derby. No Derby ninguém viaja, ninguém dorme, e nunca apareceu uma visita.

Ninguém entra no Derby. Além dos garçons sonolentos, encostados nas paredes ou nas mesas, só nós ficamos lá. De vez em quando, alguém pede um conhaque ou um café, ou então, de repente, se escuta um pigarro ou um suspiro. Mas é só. Quando o relógio bate as horas, só os garçons sabem que horas são. Para nós, as horas não são horas. São apenas ruídos de relógio.

Vou ao Derby há anos, todas as noites. Mas não conheço ninguém, nem ninguém me conhece. Às vezes, quando entro, parece que alguém me acena com a mão. Mas não acena. O aceno foi para chamar o garçom. Nunca ninguém me vê entrar. Nem os garçons. Não os conheço e tenho certeza que, se tentasse falar com algum, ele me perguntaria se não tenho casa ou mulher, ou outro lugar para onde ir. Por isso, não os conheço.

Sou sempre o último a chegar. Quando entro, todos os outros já estão lá. Nunca consegui entrar no Derby antes dos outros. Não falo com ninguém, mas eles me olham e eu sei que todos gostariam de chegar depois de mim. Como eu chego depois deles.

Se tivesse outro lugar para onde ir, jamais iria ao Derby. Mas todas as pessoas que conheço ou estão viajando ou estão dormindo, ou, então, têm visitas, e eu não tenho outro lugar para onde ir. Tenho a minha casa. Mas a minha casa é só a minha casa.

Se ninguém me olhasse, talvez o Derby fosse até um bom lugar. Mas todos me olham e eu não gosto que me olhem. Sempre que alguém me olha espera que eu faça alguma coisa. E eu não posso fazer nada. Se pudesse, não estaria no Derby. Mas eles não sabem e não param de me olhar. Por isso, sei que estão esperando. Talvez não saibam nem o que esperam, mas eu sei que eles esperam. Se não esperassem, também não iriam ao Derby todas as noites, nem olhariam para mim. Por isso, não gosto do Derby. Eu não posso fazer nada.

Eles não sabem, eu sei que eles não sabem, mas eu sou igual a eles. Também espero. Por isso, vou ao Derby todas as noites. Como eles.

Nenhum deles fala comigo. Mas eu sei que pensam que sou diferente, apesar de sentar como eles, de beber como eles e de esperar como eles. Mas eu não sou diferente. Sei que não sou. A única diferença, se é que se pode chamar diferença, é que eu sempre chego depois deles. E, talvez por isso, eles me achem diferente e me olhem, e esperem que eu faça alguma coisa.

O quê, eu não sei. Mas sei que eles esperam. Às vezes, de tanto pensar, chego até a pensar que eles esperam que eu faça um milagre. Ou, então, que não volte mais ao Derby, se não puder fazer outra coisa.

Ontem, como sempre, nenhum deles falou nada. Mas os olhares diziam tudo. Há anos que eles me olham e eu conheço o olhar deles. Mas não podia fazer nada. Mesmo que me levantasse e fosse embora, nada iria acontecer. Eles continuariam esperando e o meu lugar, mesmo vazio, continuaria sendo o meu lugar. Por isso, desviei os olhos e olhei a parede à minha frente. Pelo menos, a parede nada me pediria. E não pediu.

Mas eles também deixaram de pedir. De repente, deixaram de me olhar e até os garçons se desencostaram das paredes e das mesas. Assustado, olhei-os um por um e vi que, realmente, ninguém mais olhava para mim. Mas, mesmo assustado, pela primeira vez sorri no Derby. Alguma coisa, finalmente, estava acontecendo.

Talvez por causa do meu sorriso eles pensassem que fui eu. Mas não fui. Tenho certeza que não fui. Eu só escutei, como todos eles escutaram.

Tudo tem seu tempo determinado,

e há tempo para todo o propósito

debaixo do céu. Há tempo de nas-

cer e tempo de morrer...

A voz calou-se e um deles levantou-se e começou a bater palmas, e todos eles se levantaram e começaram a bater palmas. E, quando as palmas acabaram, todos se voltaram para mim e sorriram, agradecendo. Quis dizer-lhes que não tinha sido eu. Mas eles não queriam escutar-me. Durante anos acreditaram que eu podia fazer alguma coisa e, agora, que alguma coisa, realmente, aconteceu, não precisavam de mais nada. O milagre já tinha acontecido.

Levantei-me e saí, e um deles sentou no meu lugar. Agora, não posso mais voltar ao Derby. No Derby já ninguém espera nada.

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O autor
Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone Fixo: 253.943.773
Telefone Celular: 963.304.501
E-mail: leiradella@sapo.pt
Com o Longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1987), deu início à saga de Eduardo (espécie de seu alter-ego), personagem que atravessa todos os seus livros subseqüentes, entre os quais Guerrilha urbana (1989), Cinco dias de sagração (1993) e A solidão da verdade (1996), que sem nenhum favor podemos destacar entre o que se produziu de melhor no romance brasileiro das últimas décadas. (André Seffrin, Revista EntreLivros, São Paulo, fevereiro de 2006)
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

José Alcides Pinto (Re)descoberto (Inocêncio de Melo Filho)

(José Alcides Pinto)

José Alcides Pinto é uma das vozes mais intensas da poesia cearense. Se fosse o caso de determinarmos uma tríade literária, ele não seria excluído. É neste contexto de significação e representação da arte alcidiana que as edições G.R.D, fizeram chegar às livrarias Poemas Escolhidos II (2006), possibilitando, assim, um segundo encontro dos leitores com o autor e sua obra. Quem ainda não o leu poderá ter o prazer de descobri-lo e fazer deste vate um dos seus diletos.

É vasta a poética de José Alcides Pinto. Estas duas antologias volumosas comprovam isto. Poética vasta e forte, consegue representar o homem e suas circunstâncias, fazendo-se discurso universal, consciente do humanismo e da fúria que lhe é peculiar.

Uma poesia desta natureza poderia ser vertida com sucesso para o inglês, francês, espanhol... Seria lida e apreciada, faria parte dos destinos de outros mortais, guiaria os seus sentimentos. Falta-lhe editores e tradutores que façam a poesia de José Alcides Pinto alcançar todas as esferas do planeta. Mesmo assim, sua poesia concretiza o cosmopolitismo a partir da linguagem.

A poesia alcidiana caminha com os próprios pés, ou seja, contém linguagem própria. É livre como as águas e o vento, não tem amarras. Libertou o poeta e liberta quem dela se aproxima e se deixa possuir. Estamos diante de uma poesia surpreendente e insubmissa.

O efêmero e o transitório indicando passagem do tempo pela existência transubstanciando os seres e as coisas na natureza é uma constante na poesia de José Alcides Pinto, para nos conscientizar de que fomos feitos para a morte e viver significa um aprendizado necessário que nos servirá até para acolhermos com tolerância “a indesejável das gentes”.

Esta edição, que traz o titulo de Poemas Escolhidos II, traduz a vitória e a resistência da poesia que sobrevive em reduzidos espaços. Ela nem sempre se destaca na livrarias e nas vidas dos leitores. O que pode transfigurar esta realidade? Os avanços educacionais e sociais que permitirão aos homens reais vivências poéticas.

Segundo Nelly Novaes Coelho “a obra alcidiana é um universo – em – processo, visceralmente arraigado na poesia (mesmo quando se manifesta em prosa)”. A avaliação da escritora é acertada, pois o conto, o romance, o teatro e a crítica literária são extensões da sua poética que exigiu outros gêneros literários para reiterar sua existência.

A morte, o erotismo, o misticismo e as marcas surrealistas caracterizam a poesia de José Alcides Pinto. Estas características não se isentam do corpo da sua poética e a morte por ser uma das mais intensas se desvela num plano sagrado quando diz ser o outro rumo da vida e profana por admitir ser a “serva de Satã”.

Além do lirismo amoroso se expressa fortemente o lirismo social na poesia de José Alcides Pinto, nos convencendo de que o poeta é sempre um crítico da sociedade, mesmo que sua escritura não ponha os homens frente a frente, fazendo-os refletir para que novos atos e sentimentos sejam edificados. A arte alcidiana “denuncia a exploração do homem pelo homem, a injustiça social...” É desta forma que a literatura anuncia sua utilidade, despertando os indivíduos, representando seus desejos, semeando nos seus corações a semente da indignação.

Ainda neste contexto de consciência social, não podemos omitir o poema “A pequena varredora”, no qual o eu lírico se faz vocativo e chama a “menina dos pés graciosos” que tudo varre. Sua vassoura é um instrumento de mudanças, o eu lírico sabe disso, por isso a chama insistentemente para que suas ações se repitam.

José Alcides Pinto seria um poeta panfletário? Que mal há nisso? Sua poesia não se prende a rótulos. Fazer poesia, apossar-se das palavras e subordiná-las às suas vontades é o que realmente lhe interessa.

Nos ensina Cândida Vilares Gancho que “uma das grandes preocupações dos poetas em todos os tempos tem sido a de tentar definir a poesia”. Esta preocupação se intensificou bem mais no modernismo, trazendo consigo a nominação de metalinguagem, propondo explicar a arte e o fazer poético a partir da própria arte. É o que faz José Alcides Pinto em vários dos seus poemas. Para exemplificar o que estamos afirmando, citaremos o poema que se intitula por “Poesia” do livro Águas Premonitórias (1986):

Fazer poesia não é arrumar uma seqüência

de palavras

como quem levanta uma casa – tijolos sobre tijolos.

Uma escada de degraus sucessivos com corrimão.

Não! – não é isso nem aquilo.

É muito mais que construir uma casa com tijolos.

Muito mais que construir uma escada com

degraus e corrimão.

Neste segundo volume de Poemas Escolhidos conclui-se o que se pode considerar o melhor da poética alcidiana. Além da poesia, é por demais significativa a fortuna crítica que se acumula nestes dois livros, especificando o valor e a grandeza da literatura de José Alcides Pinto, que não cessa de ser reiterada pelos leitores e críticos.
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