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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Ode à fermosa Mirna Rosa (Nilto Maciel)

(Venus, Vulcano e Marte, de Tintoretto)

Acordei doido para acordar, sair de um sonho noir. Andava por rua interminável. Quanto mais caminhava, mais à frente via o asfalto molhado e esburacado, casas fechadas dos dois lados, silêncio e solidão. Dos postes escorria luz amarelada e frouxa, que se espalhava pelo chão. Talvez se avizinhasse a madrugada. Ou aquilo fosse um mundo em ruínas, abandonado pela vida. Deslizavam ratos, em correria pelos cantos, à busca de esconderijos. Ao redor das lâmpadas, voejavam milhões de mosquitos. Eu queria fugir de lá, chegar a um refúgio, meu lar, quem sabe. Mas, cansado, não conseguia apressar o passo. E a avenida mais se estendia. Súbito, os buracos se multiplicaram e se expandiram. Pulava, saltitava, buscava o meio da via, voltava à calçada. Desiludia-me: nunca chegaria à claridade, ao fim da caminhada, ao sossego. Espreguicei-me, espichei-me todo, abri os olhos, sentei-me à beira da cama. Precisava logo de alegria. Lavei a cara, olhei-me com misericórdia e alcancei a copa. Abri a porta da geladeira, agarrei um copinho de iogurte e me pus a perambular pela casa. Fui abrindo portas e janelas, para ver o sol, o vento e a liberdade. Entanto, a tristeza noturna não me deixava. E assim vivi até a hora do almoço. Sentei-me na velha cadeira, prato à mão. Liguei a televisão para me aproximar da realidade do mundo e me afastar de mim: ateavam fogo a carros no Rio de Janeiro, fanáticos muçulmanos espedaçavam crianças com bombas, oradores fleumáticos incitavam os pobres a exterminar o Diabo. Tive nojo de tudo e vontade de reduzir a pó aquele aparelho daninho. Levei o prato à pia. Formigas passeavam famintas. Lembrei-me do quarto de hóspedes, onde há anos cochilam velhos poetas. Por acaso, dei de frente com secular grego: “As mulheres me dizem: – Anacreonte, / Toma um espelho e olha-te! / Velho! Nem tens cabelos nessa fronte!... / vês? O tempo desfolha-te”. Da Grécia rumei para Roma. Alcancei um Quinto Horácio Flaco a dormitar e me pus a soletrar: “Ibam forte via Sacra, sicut meus est mos, / Nescio quid meditans nugarum, totus in illis”. No meio da jornada, fui despertado por um chamamento metálico: acionaram a campainha do portão. Larguei a Selecta Latina e rumei na direção do átrio e, de lá, à entrada. Eis que toda a minha tristeza desmoronou. Diante de mim, a mais bela figura humana surgida aos meus olhos nos últimos sessentanos: Mirna Rosa. Nem me lembrava mais dela. Isto é, da visita que me solicitara dias atrás. Quem lhe falou de mim? Raymundo Netto. Que disse ele? Sua biblioteca é muito rica. E empresto livros a amigos? E dá. Isso não chega a ser verdade. Sabe o que quero? Não. As odes de Anacreonte. Para... Minha dissertação. Anacreonte? Como ponto de partida. E de chegada? Francisco Carvalho. Título. Talvez “De ode em ode: de Anacreonte a Carvalho”. Excelente. Posso ir visitá-lo? Sim, pode. Quando? Bem quiser.

Conduzi-a ao quarto dos hóspedes ilustres. Ela se estarreceu diante das estantes. Passeou os olhos pelas lombadas vetustas e foi de A a Z, num ziguezague estonteante. Senti tontura e me recostei em Machado de Assis, que recuou. Sinto a boca seca. Então beba água. Venha comigo. Fomos à fonte. Nunca decorei nada, a não ser um verso aqui, outro ali. Naquela tarde, porém, lembrei-me de uns versos do Camões: “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura; / Vai fermosa, e não segura!” São seus? Quem me dera ver-te fermosa, e descalça pelo mato. Regressamos à sala, eu a cambalear, atônito, febril e trêmulo. Ela, esvoaçante, cheia de sorrisos e curiosidades. Carvalho escreveu odes, mas também canções, cantatas, cânticos, elegias, epigramas, minuetos, noturnos, pavanas, provérbios, réquiens, salmos. Você conhece a “Ode Itabirana”? É longa e traz o refrão “Fica torto no teu canto, Carlos”. E “Ode circular”? Começa assim: “No maxilar do rei há restos de ouro / restos de prata, restos de marfim / e de palavras, pêssegos da ira”. A menina se extasiava e eu lia: “Deusa vegetal / de corpo límpido”. Estes versos são de “Ode à Árvore”. Linda é também a “Ode ao Sol”. Leio? Leia. Li: “Ó sol dos deuses olímpicos / me arrebata para os vales / do amor. Ali Eros passeia / em seus dourados cavalos”. Eu não cansava; Mirna descansava. Escute esta “Mínima Ode para um Grande Mamífero”: “O rumor de tua sombra / sacode os espíritos / da floresta”. Você não poderá esquecer a “Ode ao pastor das estações”. Longa, dividida em onze pequenos poemas e dedicada a Octavio Paz: “De verde desenhas o corpo / da mulher amada. O papiro do / ventre, os prados da lascívia”. Genial esse Carvalho. E a “Ode triunfal”? É poesia em alta rotatividade: de Homero, a Camões, a Pessoa. Veja o primeiro terceto: “Estavas, linda Inês, quase em sossego / à sombra dos arbustos da colina / cuidando dos rebanhos do argonauta”.

Invadia-me, pouco a pouco, a volúpia dos faunos. Busquei “Mosaicos eróticos”: “Tudo é breve e límpido no amor. / Tudo se ilumina quando / a ceia da carne celebra o instinto”. Mirna se derretia de paixão pelo verbo de Francisco Carvalho. Li, por fim, “Cântico da nudez”: “Toco tua nudez / de taça que ardesse / ao fogo do vinho”.

Convidei-a para conhecer meu quarto de dormir. Poeta dorme? Não sendo poeta, durmo até demais. E sonha? Com ruas desertas, casarões assombrosos, caminhos esburaquentos. Pelo menos isso serve para escrever. Ou me apavorar. E caí na cama feito um pacote bêbado, atrapalhando o sábado. Chico Buarque? Um pouco.

Fortaleza, 30 de novembro de 2010.
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Uma “redescoberta” da literatura africana no Brasil

Adelto Gonçalves (*)

I

A Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) colocou no mercado uma nova coleção, Poetas de Moçambique, em que apresenta antologias dos maiores poetas modernos de língua portuguesa e origem moçambicana. Segundo a editora, os autores escolhidos estabeleceram freqüentemente diálogo com a literatura brasileira, especialmente com as obras de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Cecília Meireles (1901-1964), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Manuel Bandeira (1886-1968). Os primeiros volumes são dedicados a José Craveirinha (1922-2003) e Rui Knopfli (1932-1997).

Craveirinha, primeiro autor africano galardoado com o Prêmio Camões, em 1991, é um dos nomes fundamentais da literatura moçambicana. Filho de pai algarvio e mãe ronga, é dono de uma obra concisa, que cobre cinco livros publicados em vida e duas coletâneas póstumas, além de dezenas de poemas espalhados em periódicos e antologias. Este livro reúne os principais poemas do autor com nota biobibliográfica de Emílio Maciel.

Já Rui Knopfli produziu uma encorpada e original obra literária durante o período colonial. Seus poemas selecionados estabelecem diálogo com as principais tradições clássicas e modernas da poesia. O livro traz posfácio com texto crítico e nota biobibliográfica de Roberto Said.

Ao mesmo tempo, a Ateliê Editorial, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), acaba de lançar Portanto... Pepetela, organizado por Rita Chaves e Tania Macêdo, professoras de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). O angolano Pepetela, nascido Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ganhador do Prêmio Camões de 1997, é talvez o mais importante romancista de seu país. Com apresentação do moçambicano Mia Couto, o livro reúne 38 artigos e ensaios de estudiosos da obra de Pepetela.

Nada mais alvissareiro do que essa “redescoberta” da literatura africana de expressão portuguesa. Mas desses três autores, apenas José Craveirinha é resultado da mistura do sangue português com africano. O que se espera é que esse interesse não se restrinja apenas a autores lusodescendentes, mas seja aberto a todos os africanos que fazem literatura em Língua Portuguesa.

II

Nada contra Pepetela, Agualusa, Mia Couto ou Luandino Vieira, nomes hoje incontestáveis no panorama da literatura africana de expressão portuguesa. O que se estranha é por que só descendentes de portugueses que nasceram em terras africanas têm largo espaço nos veículos de comunicação de Portugal e nas universidades de Portugal e do Brasil.

Basta ver que o livro Portanto... Pepetela traz, ao final, uma lista de 56 teses de doutorado e dissertações de mestrado defendidas em universidades brasileiras sobre a obra de Pepetela. Um exagero, evidentemente, porque há muitos outros autores africanos de expressão portuguesa que poderiam ser estudados. E não o são. Não se quer acreditar que seja por racismo, pois o que se espera é que esse tipo de comportamento seja algo já superado, sem razão de existir neste começo de século XXI.

Talvez seja ainda a "saudade do império colonial perdido", como disse Patrick Chabal, professor de Estudos Africanos do King´s College, de Londres, para se citar aqui um nome isento destas questiúnculas lusófonas, que impeça os acadêmicos e editores portugueses de enxergar que a lusofonia é uma falácia – que não vai chegar a lugar nenhum – enquanto eles não aceitarem a verdadeira dimensão da língua portuguesa para além da Europa.

Em outras palavras: Pepetela, Agualusa, Mia Couto e Luandino Vieira fazem parte da última geração de lusodescendentes que, nascidos na África, praticam uma literatura com vivência africana. Dentro de 20 ou 30 anos, quando provavelmente já não estiverem mais neste mundo, quem irá representar a Literatura Africana de expressão portuguesa senão os autóctones ou um ou outro miscigenado?

Portanto, o futuro da Língua Portuguesa na África vai depender dos naturais desses países por onde os portugueses criaram raízes – e também daquelas regiões que, hoje, sofrem com a opressão de vizinhos que não falam português. É o caso da Casamansa, província do Sul do Senegal, que ainda aspira livrar-se da opressão de Dakar para se tornar um país independente e membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Será que em Casamansa não há um único poeta ou escritor que escreva em português? Ou somos nós que não queremos vê-los?

Como diz o escritor moçambicano João Craveirinha, por mais que se assumam "lusófonos", os escritores de tez escura serão sempre os "outros", os outsiders, os ex-colonizados. Entre esses, além de João Craveirinha, pode-se citar de uma enfiada Paulina Chiziane, Ungulani ba Ka Kossa, Nelson Saúte, Noémia de Sousa, Kalungano, Luís Bernardo Honwana e Suleimane Cassamo, de Moçambique; Adriano Mixinge, João Melo, Ondjaki, Victor Kajibanga, Uanhenga Xitu, Ana Paula Tavares, Luís Kandjimbo, de Angola; José Luís Hopffer Almada e Germano Almeida, de Cabo Verde; Abdulai Sila, Hélder Proença (?-2009) e Odete Semedo, da Guiné-Bissau; Alda do Espírito Santo e Tomás Medeiros, de São Tomé Príncipe. E muitos outros.

O que é preciso dizer – e quase ninguém o faz – é que persistir nessa visão preconceituosa é um erro, que equivale a dar um tiro no próprio pé, pois recusar-se a reconhecer que o futuro da Língua Portuguesa na África depende dos naturais daqueles países é condená-la ao desaparecimento. E olhem que quem escreve isto é um brasileiro de primeira geração, de pai português de Paços de Ferreira, Norte de Portugal, e de avós maternos açorianos.

III

Embora o desconhecimento no Brasil acerca dos assuntos africanos seja abissal, não se pode deixar de reconhecer que foi graças aos literatos brasileiros que a Língua Portuguesa continuou viva nas décadas de 1950, 60 e 70 na África de expressão portuguesa, especialmente entre aquela camada mais culta, que gostava de ler Jorge Amado (1912-2001), Érico Veríssimo (1905-1975), Guimarães Rosa (1908-1967) e outros tantos.

Rui Knopfli mesmo é um poeta fortemente influenciado pela literatura brasileira, além de suas grandes ligações com a poesia portuguesa moderna. De africano, só carrega o fato de ter nascido em Inhambane. Trata-se de um fino poeta, cuja poesia está entre o que de melhor se escreveu em Língua Portuguesa no século XX, mas que, ao contrário de Pepetela que permaneceu em Angola e lutou contra o colonialismo, deixou Moçambique tão logo o país se separou de Portugal. Jamais se assumiu "moçambicano" no anterior e muito menos no atual contexto africano e sociopolítico do pós-independência. Assumiu-se, sim, como um português de Moçambique agastado com os "pretos" da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que queriam ser iguais aos "brancos".

A visão que Knopfli tinha da África era eurocêntrica, de um colono que pertencia a uma elite colonial intelectual que, provavelmente, sonhava com um Moçambique semelhante à Rodésia ou à África do Sul sem apartheid, mas com os chamados “brancos” a mandar nos "pretos", ou seja, “cada macaco no seu galho", para se repetir aqui uma expressão politicamente nada correta que se ouve ainda neste Brasil de racismo disfarçado. A lusitanidade européia de Knopfli sempre falou mais alto.

Quem conhece a vida moçambicana pré-independência sabe muito bem que Knopfli atacara a arte banta do escultor Alberto Chissano e do pintor Malangatana em termos depreciativos, como a dizer que eles nunca poderiam ascender a artistas plenos em razão de sua origem "primitiva", tal como os "bons selvagens" de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que seriam congenitamente limitados. Isto está na Revista Tempo, de Lourenço Marques (hoje Maputo), dos anos 1970-1971. Quem duvidar que consulte na Biblioteca Nacional de Lisboa a coleção da revista. Mas é claro que isto ninguém gosta de lembrar.

Como se sabe, na África os conceitos não são os mesmos vigentes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa em relação ao ser e estar africano. Até porque na África os "nativos" não foram exterminados como os ameríndios nas Américas. E, como continuam a sê-lo no Brasil em pleno século XXI. Para se ter um exemplo desse holocausto, basta ver que os traços indígenas hoje são pouco perceptíveis no brasileiro médio, exceto talvez no homem do Centro-Oeste e do Amazonas, ao contrário do que se pode constatar no Chile, no Paraguai, na Bolívia, no Equador e até na antigamente tão conservadora Argentina. Basta ver o que fazem, nos dias de hoje, certos fazendeiros e seus capangas com os caiowás, em Mato Grosso do Sul, sem que as autoridades tomem qualquer providência mais efetiva.

Na África, os autóctones continuam a ser maioria esmagadora e isso tem um peso enorme na consciência dos africanos, mesmo em meio a crises econômicas. Até mesmo porque eles estavam num estágio de desenvolvimento superior ao dos indígenas americanos, o que obrigou a chamada colonização portuguesa a restringir-se a vilas e destacamentos litorâneos. Até mesmo para “atravessar” o comércio da escravatura, os portugueses dependiam de nações africanas que traziam subjugados seus inimigos para comercializá-los nas praias. Com isso, a ocupação européia, de um modo geral, nunca conseguiu apagar no homem africano o grande sentimento de pertença ao legado banto.

Como tudo isso são águas e ressentimentos passados, o que importa hoje é preservar a Língua de Camões também na África. E essa preservação passa por um apoio mais decisivo em favor da divulgação e estudo da literatura de expressão portuguesa que é hoje praticada por africanos de todos os matizes de pele, indistintamente.

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PORTANTO... PEPETELA, de Rita Chaves e Tania Macêdo (organizadoras). São Paulo: Ateliê Editorial/Fapesp, 2009, 389 págs., R$ 47,00.

ANTOLOGIA POÉTICA, de José Craveirinha. Organizadora: Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 198 págs., R$ 38,00.

ANTOLOGIA POÉTICA, de Rui Knopfli. Organizador: Eugénio Lisboa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 206 págs., R$ 38,00.

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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