Translate

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Zeu e seu Olimpo (Ronaldo Monte)


Pelas musas começar, pois é próprio das musas louvar os feitos dos deuses. E como louvaram as musas midiáticas os feitos destes deuses de bermudas e pés de chinelo que reinavam no olimpo de vielas e valetas. Como foram fartos os hinos cantando o poder de vida e morte das divindades mulatas sobre seus súditos aterrorizados. A farra das musas enaltecendo os bondes, enlouquecendo ao embalo dos funks, entregando-se ao torpor das ervas, das carreiras de pó e das pedras flamejantes servidas pelos bacos de motocicletas. E os raios divinos cruzavam os céus noturnos, recados dos senhores dos becos escuros para quem ousava enfrentar o seu poder.

Mas não há deuses que resistam ao tempo. Zeus, o grande Zeus Porta-Égide, exilou-se do seu trono do Olimpo. Vieram muitos deuses depois dele. Até chegar o tempo desta leva de demônios donos das encruzilhadas michas das favelas. Deuses marionetes, animados por um poder distante e alheio a esse olimpo mal-cheiroso.

Tome-se como emblema este Zeu. Este deus mutilado e humano que traz de batismo o nome de Elizeu Felício de Souza. Foi um dos responsáveis pela morte cruel do jornalista Tim Lopes. Participou da ação que derrubou um helicóptero da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Foi um dos comandantes da invasão do Morro dos Macacos, em Vila Isabel numa guerra entre facções de traficantes.

Como tantos outros pequenos deuses da sua laia, Zeu mostrou a sua verdadeira face quando foi preso pelas forças que tomaram de assalto o seu olimpo no alto do morro do Alemão. Uma cara amedrontada, de quem sabe do seu destino. Um deus vaiado pelas pessoas de bem a quem subjugava pelo terror. Um deus de calças mijadas, exposto ao ódio do mundo pelas câmeras de televisão.

Pobre Zeu. Pobres pequenos deuses. Vão mofar na cadeia ou fugir de volta para as escadarias das vielas fedorentas. Longe deles, homens de carne, osso, poder e muito dinheiro continuarão a criar e manipular novos fantoches com ares e insígnias de divindades.
/////

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Ode à fermosa Mirna Rosa (Nilto Maciel)

(Venus, Vulcano e Marte, de Tintoretto)

Acordei doido para acordar, sair de um sonho noir. Andava por rua interminável. Quanto mais caminhava, mais à frente via o asfalto molhado e esburacado, casas fechadas dos dois lados, silêncio e solidão. Dos postes escorria luz amarelada e frouxa, que se espalhava pelo chão. Talvez se avizinhasse a madrugada. Ou aquilo fosse um mundo em ruínas, abandonado pela vida. Deslizavam ratos, em correria pelos cantos, à busca de esconderijos. Ao redor das lâmpadas, voejavam milhões de mosquitos. Eu queria fugir de lá, chegar a um refúgio, meu lar, quem sabe. Mas, cansado, não conseguia apressar o passo. E a avenida mais se estendia. Súbito, os buracos se multiplicaram e se expandiram. Pulava, saltitava, buscava o meio da via, voltava à calçada. Desiludia-me: nunca chegaria à claridade, ao fim da caminhada, ao sossego. Espreguicei-me, espichei-me todo, abri os olhos, sentei-me à beira da cama. Precisava logo de alegria. Lavei a cara, olhei-me com misericórdia e alcancei a copa. Abri a porta da geladeira, agarrei um copinho de iogurte e me pus a perambular pela casa. Fui abrindo portas e janelas, para ver o sol, o vento e a liberdade. Entanto, a tristeza noturna não me deixava. E assim vivi até a hora do almoço. Sentei-me na velha cadeira, prato à mão. Liguei a televisão para me aproximar da realidade do mundo e me afastar de mim: ateavam fogo a carros no Rio de Janeiro, fanáticos muçulmanos espedaçavam crianças com bombas, oradores fleumáticos incitavam os pobres a exterminar o Diabo. Tive nojo de tudo e vontade de reduzir a pó aquele aparelho daninho. Levei o prato à pia. Formigas passeavam famintas. Lembrei-me do quarto de hóspedes, onde há anos cochilam velhos poetas. Por acaso, dei de frente com secular grego: “As mulheres me dizem: – Anacreonte, / Toma um espelho e olha-te! / Velho! Nem tens cabelos nessa fronte!... / vês? O tempo desfolha-te”. Da Grécia rumei para Roma. Alcancei um Quinto Horácio Flaco a dormitar e me pus a soletrar: “Ibam forte via Sacra, sicut meus est mos, / Nescio quid meditans nugarum, totus in illis”. No meio da jornada, fui despertado por um chamamento metálico: acionaram a campainha do portão. Larguei a Selecta Latina e rumei na direção do átrio e, de lá, à entrada. Eis que toda a minha tristeza desmoronou. Diante de mim, a mais bela figura humana surgida aos meus olhos nos últimos sessentanos: Mirna Rosa. Nem me lembrava mais dela. Isto é, da visita que me solicitara dias atrás. Quem lhe falou de mim? Raymundo Netto. Que disse ele? Sua biblioteca é muito rica. E empresto livros a amigos? E dá. Isso não chega a ser verdade. Sabe o que quero? Não. As odes de Anacreonte. Para... Minha dissertação. Anacreonte? Como ponto de partida. E de chegada? Francisco Carvalho. Título. Talvez “De ode em ode: de Anacreonte a Carvalho”. Excelente. Posso ir visitá-lo? Sim, pode. Quando? Bem quiser.

Conduzi-a ao quarto dos hóspedes ilustres. Ela se estarreceu diante das estantes. Passeou os olhos pelas lombadas vetustas e foi de A a Z, num ziguezague estonteante. Senti tontura e me recostei em Machado de Assis, que recuou. Sinto a boca seca. Então beba água. Venha comigo. Fomos à fonte. Nunca decorei nada, a não ser um verso aqui, outro ali. Naquela tarde, porém, lembrei-me de uns versos do Camões: “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura; / Vai fermosa, e não segura!” São seus? Quem me dera ver-te fermosa, e descalça pelo mato. Regressamos à sala, eu a cambalear, atônito, febril e trêmulo. Ela, esvoaçante, cheia de sorrisos e curiosidades. Carvalho escreveu odes, mas também canções, cantatas, cânticos, elegias, epigramas, minuetos, noturnos, pavanas, provérbios, réquiens, salmos. Você conhece a “Ode Itabirana”? É longa e traz o refrão “Fica torto no teu canto, Carlos”. E “Ode circular”? Começa assim: “No maxilar do rei há restos de ouro / restos de prata, restos de marfim / e de palavras, pêssegos da ira”. A menina se extasiava e eu lia: “Deusa vegetal / de corpo límpido”. Estes versos são de “Ode à Árvore”. Linda é também a “Ode ao Sol”. Leio? Leia. Li: “Ó sol dos deuses olímpicos / me arrebata para os vales / do amor. Ali Eros passeia / em seus dourados cavalos”. Eu não cansava; Mirna descansava. Escute esta “Mínima Ode para um Grande Mamífero”: “O rumor de tua sombra / sacode os espíritos / da floresta”. Você não poderá esquecer a “Ode ao pastor das estações”. Longa, dividida em onze pequenos poemas e dedicada a Octavio Paz: “De verde desenhas o corpo / da mulher amada. O papiro do / ventre, os prados da lascívia”. Genial esse Carvalho. E a “Ode triunfal”? É poesia em alta rotatividade: de Homero, a Camões, a Pessoa. Veja o primeiro terceto: “Estavas, linda Inês, quase em sossego / à sombra dos arbustos da colina / cuidando dos rebanhos do argonauta”.

Invadia-me, pouco a pouco, a volúpia dos faunos. Busquei “Mosaicos eróticos”: “Tudo é breve e límpido no amor. / Tudo se ilumina quando / a ceia da carne celebra o instinto”. Mirna se derretia de paixão pelo verbo de Francisco Carvalho. Li, por fim, “Cântico da nudez”: “Toco tua nudez / de taça que ardesse / ao fogo do vinho”.

Convidei-a para conhecer meu quarto de dormir. Poeta dorme? Não sendo poeta, durmo até demais. E sonha? Com ruas desertas, casarões assombrosos, caminhos esburaquentos. Pelo menos isso serve para escrever. Ou me apavorar. E caí na cama feito um pacote bêbado, atrapalhando o sábado. Chico Buarque? Um pouco.

Fortaleza, 30 de novembro de 2010.
/////