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domingo, 12 de dezembro de 2010

Os homens e os outros (Cunha de Leiradella)

1
Todos os anos, em dezembro, a serra cobre-se de neve. E, depois da neve, vem o vento. Um vento frio, cortante, que assobia pelos barrancos e pelas fragas, e congela as águas das poças e dos ribeiros. O gelo faísca nas pedras e nos galhos nus dos carvalhos, e a resina dos pinheiros brilha como verniz.

O povoado é o último da serra, já no caminho da fronteira. As casas, construídas debaixo dos penedos, não têm chaminés, nem janelas. Cobertas pela neve, desaparecem na brancura, e só o fumo das lareiras se vê sair pelos buracos das paredes. As cabras e as ovelhas são recolhidas aos currais, e os cães e os gatos dormem na cinza morna dos borralhos. As mulheres fiam lã e tecem mantas de farrapos, e os homens sobem a serra, a caçar raposas e cabras, ou a passar contrabando na fronteira.

Na última casa, já na saída do povoado, junto do ribeiro, dois homens aquecem-se ao lume da lareira. Um é velho e tem a pele da cara vermelha e marcada das bexigas. Na nuca, as rugas cor-de-rosa formam losangos imperfeitos, e os cabelos são compridos e crespos. É alto e magro, e os olhos, da cor da cinza, são irrequietos e frios. Sentado no escano, ao lado do companheiro, mexe constantemente na lareira com a vareta da espingarda. O outro homem ainda é novo. Tem, também, a pele da cara vermelha e curtida do vento e da geada, e os olhos são iguais aos do velho. Só não são tão irrequietos, nem tão frios. Vestem ambos velhas samarras de bombazina, forradas de pele de raposa, e calçam chancas tachadas, de couro cru. Estão imóveis e calados há muito tempo.

Num gesto vagaroso, o velho pega num cavaco fumegante e acende a ponta do cigarro. Tira uma fumaça profunda e atira o cavaco à lareira.

- Catano! Vamos ter um bom dia.

O rapaz não se mexe e responde sem olhar para o velho.

- Se calhar.

O velho puxa outra fumaça e ajeita-se no escano.

- Soubeste que mataram o Zifa da Zefa?

O rapaz não responde e o velho puxa algumas brasas para junto das chancas com a vareta da espingarda.

- Na semana passada mataram o cabo de Bouro.

O rapaz continua imóvel, a olhar para o lume.

- Eu soube.

O velho atira a ponta do cigarro às brasas e dá uma palmada no joelho.

- Catano! O que é que tu tens, rapaz?

O rapaz continua sem se mexer, mas abana a cabeça, num gesto brusco.

- Nada, carago!

O velho bate nas brasas, com a vareta da espingarda, e as fagulhas saltam no ar.

- Boa vai ela, catano! Então o Zifa da Zefa morre na cadeia, só por mor dum filho da puta dum cabo ser promovido, deixa mulher e três filhos, e tu dizes que não há nada?

O rapaz não responde e o velho faz uma pausa.

- Diz-me cá, rapaz. Estás com medo, catano?

O rapaz levanta a cabeça e olha para o velho.

- Carago! Você bem sabe que eu nunca tive medo!

- Então, que é que tens, porra?

- Nada, já lhe disse!

O velho levanta-se.

- Está bem. Uma pessoa deve dizer sempre aquilo que acha que é certo. Onde é que está a pinga?

O rapaz volta-se e aponta a parede, atrás do escano.

- Aí dentro.

O velho tira a cabaça de dentro do forno e senta-se, e bebe alguns tragos.

- A rapariga foi à missa?

- Foi ao confesso.

O velho ri-se.

- Uns é que matam e ela é que se confessa, catano?

Bebe mais um trago e estende a cabaça ao rapaz. O rapaz abana a cabeça. O velho encolhe os ombros e coloca a cabaça em cima do escano. A seguir, levanta-se e abre a porta. Uma rajada de vento e neve sopra do pinhal e revolteia pela casa. O gato, deitado na cinza, junto dos potes, abre um olho e afila as orelhas. O velho olha a serra durante algum tempo e sorri. O vento assobia entre os pinheiros e atira a neve contra os troncos e contra os penedos. Apesar do ar gelado, o rapaz não se mexe. O velho fecha a porta e senta-se, e estende as mãos por cima do lume.

- Vento de reconco. Não tarda a parar.

Chega-se mais perto e esfrega as mãos com força.

- O cão foi com a rapariga?

O rapaz não responde. O velho recosta-se no escano e ajeita a samarra ao corpo, e fecha os olhos. O rapaz acende um cigarro e tira a primeira fumaça, e, num gesto brusco, atira o cigarro às brasas e cruza os braços no peito.

- Vou pra Caniçada.

O velho arregala os olhos e levanta-se num pulo.

- Vais pra onde, catano?

- Carago! Vou pra Caniçada, já disse.

Os olhos do velho quase se fecham.

- Vais prá barragem?

- Vou trabalhar, carago!

O velho olha para o rapaz, fixamente, durante algum tempo. A seguir, pega na cabaça e bebe dois tragos, devagar.

- Quer dizer, então, que vais pra Caniçada.

O rapaz não responde. Baixa a cabeça e fixa os olhos no lume. O velho continua a olhar para ele.

- Já lá foste alguma vez?

- Não, carago! Mas sei que estão a contratar pessoal pra trabalhar na barragem.

Calam-se. O velho senta-se e coloca a cabaça em cima do escano. A seguir, pega na vareta da espingarda e atiça as brasas.

- Quer dizer que não tens nada, ham?

O rapaz não responde.

- Porra, rapaz, será que tu não sabes o que te vai acontecer?

O rapaz continua calado.

- Fala, catano!

- Sei, carago!

- Quer dizer que sabes, e queres ir?

O rapaz não responde e o velho dá uma palmada no joelho.

- Estás doudo, rapaz?

- A Libana vai ter um filho, carago!

O velho ri-se.

- E só por mor disso queres tu ir pra Caniçada?

O rapaz não responde e o velho pega na cabaça e bebe um trago.

- Fala, catano!

- Carago! Não quero que o meu filho padeça o que eu padeço.

O velho abana a cabeça com força.

- Além de cagão, ainda tens vergonha da nossa vida, catano?

Coloca a cabaça em cima do escano e mexe nas brasas, devagar, com a vareta da espingarda.

- Rapaz, eu nunca tive pena de ninguém. Ter pena dos outros é pior do que ter pena de nós. Mas, agora, eu tenho pena de ti, caralho!

O rapaz não responde e o velho pega numa canhota e atira-a à lareira.

- Que é que tu pensas que vais fazer pra Caniçada, ham?

O rapaz encolhe os ombros.

- Porra, rapaz!

O rapaz continua calado e o velho dá um murro no assento do escano.

- Estás doudo, catano?

O rapaz olha para o velho e abana a cabeça, com força.

- Carago! Não quero que o meu filho ande sempre fugido, como eu ando.

O velho faz alguns riscos na cinza, devagar, com a vareta da espingarda.

- Olha, rapaz. Há muitos anos, quando a guerra civil andou em Espanha, também houve gente que pensava como tu pensas. Que se dissesse amém com os falangistas, salvava-se. Pois disseram amém, lamberam o cu dos alcaides e foderam-se, catano!

Faz uma pausa e cospe com força nas brasas.

- Quanto mais uma pessoa se baixa, rapaz, mais o cu se lhe vê. Olha os bichos, catano! O gato bravo foge ao cão? Muita gente diz que foge, mas não foge. Se o cão vai em cima dele, ele enfrenta-o e adeus cão. Esta serra é dura, rapaz, é madrasta, tem neve, vento, o caralho, catano, mas vê se algum bicho sai daqui. Antes livre com fome do que gordo na gaiola, rapaz.

Atira duas canhotas à lareira e ajeita-as com a vareta da espingarda.

- Se tu fores pra Caniçada, sabes o que te vai acontecer? Nem cagar direito te vão deixar. Aqui na serra, a guarda sobe mas sempre desce, catano!

Faz uma pausa e olha para o rapaz.

- A vida sempre assim foi, rapaz. Ou uma pessoa mata ou uma pessoa morre. Mas se tu fores pra Caniçada, catano, mesmo que não te matem, já morreste, rapaz.

Junta as brasas espalhadas na cinza, com a vareta da espingarda, e empurra-as para junto das canhotas.

- Uma pessoa não morre só quando morre, rapaz. Uma pessoa também morre quando não faz o que deve ser feito, catano!

Recosta-se no escano e olha para o rapaz durante algum tempo.

- Diz-me cá, rapaz. Foi a rapariga que te meteu isso na cabeça?

O rapaz não responde.

- Catano, rapaz!

- Ela nem sabe disso, carago! Eu é que quero largar esta vida.

O velho ri-se.

- Ninguém larga a vida que tem, rapaz. Cá se nasce, cá se morre. A menos que se queira passar a vida a lamber o cu dos outros, catano!

Faz uma pausa e balança a cabeça, devagar.

- Rapaz, rapaz, quando o lobo se torna cordeiro até as toupeiras lhe cagam na cabeça, catano! Sempre assim foi e há-de ser.

Faz outra pausa e ajeita as canhotas com a vareta da espingarda.

- Mas tu é que sabes.

O rapaz dá uma palmada no joelho.

- É, carago! Eu é que sei.

Calam-se. O velho aconchega a samarra ao corpo e cruza os braços no peito e fecha os olhos, e o rapaz finca os cotovelos nos joelhos e apoia o queixo nas mãos. Ficam assim algum tempo, até que um cão ladra ao longe e o velho abre os olhos.

- É o teu cão, catano!

O rapaz levanta-se e abre a porta. O dia já nasceu e o vento parou. O rapaz olha o pinhal. O cão salta na neve e ladra, com o rabo levantado e abanando. É um cão de caça, traçado de perdigueiro com coelheiro, e, visto de longe, não parece maior do que uma lebre. A mulher vem mais atrás, curvada e encapuzada no xaile, com a saia a arrastar-se na neve. Ao farejar o rapaz o cão ladra mais alto. Atravessa o ribeiro gelado com dois pulos e entra pela porta. Lambe as mãos do rapaz e lambe também as do velho. O gato continua deitado na cinza, indiferente à correria do cão. A mulher chega pouco depois. É mais nova do que o rapaz, mas também tem a pele da cara vermelha e curtida do vento e da geada. O rapaz abraça-a.

- Libana, carago!

O velho ri-se e levanta-se. A mulher afasta-se do rapaz e olha para o velho.

- Caraças! O que é que foi, padrinho?

- Não foi nada, rapariga.

O rapaz fecha a porta e aproxima-se da mulher.

- Aquece-te, carago!

O velho coloca a vareta na espingarda e prende os polvorinhos e os chumbeiros à cintura.

- Bom...

A mulher olha para o rapaz.

- Não vais caçar?

O rapaz não responde.

- Duardo, caraças!

O rapaz passa um braço na cintura da mulher e puxa-a para junto do escano.

- Aquece-te, carago!

A mulher tira o braço do rapaz e afasta-se, e o velho aproxima-se da lareira e esfrega as mãos por cima do lume.

- Rapariga, rapariga!

A mulher olha para o velho, espantada.

- Caraças, padrinho, o que é que foi?

- Não vai haver mais caça, rapariga. Nem mais caça, nem mais nada, catano!

A mulher olha para o rapaz, ainda imóvel. O velho olha para os dois e ajeita a espingarda debaixo do braço.

- Rapariga, tu não vives com um homem. Vives com um cagão, catano!

O rapaz cerra os punhos e dá dois passos em direção ao velho. A mulher segura-o por um braço.

- Caraças, Duardo!

O velho ri-se.

- Diz que vai pra Caniçada.

A mulher olha para o velho e, a seguir, olha para o rapaz.

- É verdade, Duardo?

- Carago! É por mor do nosso filho.

- Caraças! O nosso filho ainda não nasceu.

O velho ri-se.

- Mas o medo dele já nasceu, catano!

Abre a porta e coloca a espingarda em bandoleira, e cospe na neve com força.

- Rapariga, quando uma pessoa tem medo, catano, não tem mais nada.

Sai e começa a andar. O rapaz corre e segura-o por um braço.

- Carago, velho!

A mulher corre também e coloca-se entre os dois. O velho afasta-a.

- Deixa, rapariga. Deixa. Cão que ladra não morde, catano! Sempre assim foi e há-de ser.

A mulher volta-se para o rapaz.

- Queres deixar a nossa casa, Duardo?

Faz uma pausa e olha-o, fixamente.

- Mesmo que o nosso filho nasça morto, caraças?

O rapaz não responde e o velho ri-se.

- Rapariga, morto o teu filho já está, catano, se nascer igual ao pai!

O rapaz olha para o velho e para a mulher, e, sem uma palavra, num gesto brusco, entra em casa. Volta, pouco depois, com a espingarda e os polvorinhos e os chumbeiros, e, sem olhar a mulher ou o velho, assobia ao cão e começa a andar. O velho olha para a mulher e sorri, e segue atrás do rapaz.


2
A serra brilha ao sol da manhã, silenciosa. O vento parou e o gelo faísca nos penedos e nos galhos nus dos carvalhos, e os pombos bravos e as pegas e os gaios voam nos pinhais. As águias e os gaviões planam no céu sem nuvens, e os coelhos e as lebres afilam as orelhas nas saídas das tocas, atentos ao menor sinal de perigo. Escondidas entre os matos e as urzes, as charrelas ciscam a neve e piam, e os corços retouçam as folhas geladas dos silvedos. A neve escorre por entre a caruma dos pinheiros e os lobos e as raposas escondem-se nos fojos, e os javalis fossam nos chavascais, a grunhir, enraivecidos e famintos.

Lado a lado, os dois homens caminham em direção ao pinhal, as espingardas em bandoleira e nuvens de vapor a sair dos narizes e das bocas. O cão corre na frente, a farejar as touceiras que encontra no caminho. Sempre calados, os homens atravessam o ribeiro e entram no pinhal, as chancas a enterrarem-se na neve amolecida.

Uma pega voa entre os pinheiros e o velho pára, e acende um cigarro. Tira duas fumaças e aponta as encostas nevadas, que sobem até aos cumes.

- Vamos pra onde, catano?

O rapaz não pára, nem se volta.

- Às cabras, carago!

- Às cabras? Catano, prás cabras, temos que ir ao Cantarcho!

- Tem medo, carago?

O velho sorri. Isso, rapaz. Quem tem cu tem medo. Mas é melhor ter medo por ter cu do que ter medo por não ter. Começa a andar, as pernas enterradas na neve até quase aos joelhos. Ao longe, o cão ladra. O velho pára.

- Catano! É lebre!

O rapaz não pára, nem responde. O cão ladra outra vez. O velho cospe na neve e começa a andar.

- De certeza que é lebre, catano!

O rapaz fala sem se voltar.

- Carago! Eu ouvi.

Um pombo bravo voa dum pinheiro, um pouco à frente. O velho sorri. Isso, bicho. Pára e olha o vôo do pombo, serra abaixo. Vai, bicho, vai. Cada um com a sua sina. Olha a serra, a neve a cobrir caminhos e valados, e o sol a faiscar no gelo. Sempre que cá passo me lembra Lóbios. Tira uma fumaça profunda e sorri. Bons tempos aqueles, caralho. Fazia-se o que se fazia, mas o que se fazia, a valer, isso nunca ninguém disse. Tira outra fumaça e cospe na neve. Hoje, todos dizem que os populares matavam os padres e emprenhavam as freiras, mas o que os falangistas faziam, isso ninguém diz. Cospe outra vez e abana a cabeça com força. Filhos da puta. Foderam com tudo e, ainda por cima, disseram que era preciso fazer o que faziam pra mor de livrar a Espanha dos comunistas. Tira uma fumaça profunda e sopra o fumo com força. Pois fizeram o que fizeram, prenderam e mataram quem quiseram, e tudo ficou na mesma. Quem era rico, continuou rico, e, quem era pobre pagou as contas. Ajeita a espingarda no ombro e olha as encostas cobertas de neve. Como muitos fizeram por aí. Cospe outra vez e sorri. Mas cá em riba canta outro galo. Cá em riba eles fodem-se. Ah, fodem. Na semana passada morreu um. No mês que vem, se a cadeia da Portela não abrir, morre mais um. Nós também morremos. Mas, morrer, qualquer um morre. O que importa é fazer o que se tem de fazer. Deixa cair a ponta do cigarro na neve e começa a andar. Ao longe, o cão ladra e gane, em seguida. O rapaz pára e o velho aproxima-se.

- Está no Fojo, catano!

O rapaz volta-se.

- É raposa, carago!

- É raposa, pois. Se não fosse, o cão não gania.

O rapaz olha as pernas do velho, enterradas na neve.

- Está cansado?

O velho faz um gesto de enfado com a cabeça.

- Vai andando, catano! Vai andando.

Já tinham atravessado o pinhal e caminhavam agora por entre renques de carvalhos sem folhas, cobertos de neve e de gelo. Lá em baixo, à meia encosta, ficava o povoado. O rapaz olha para as casas, alapadas debaixo dos penedos e cobertas de neve, com o fumo das lareiras a sair pelos buracos das paredes. O velho está velho, mas sabe o que diz, carago! Esta serra é dura, é madrasta, é filha da puta, mas é nossa. Volta-se e olha para o velho, e sorri. Velho, você está certo, caralho! Isto aqui é nosso. É madrasto, mas é nosso. Sempre foi. O cão deixa de ganir e ladra. O velho pára.

- Catano! O cão entocou-a.

O rapaz pára também e olha para o velho.

- Quer descansar um pouco?

O velho pisa na neve com força e a perna enterra-se até acima do joelho.

- A neve é que está mole, catano!

Continuam a andar. Sempre a subir a meia encosta, pouco depois, chegam ao Fojo. A cova da raposa fica debaixo duma laje, num bosque de vidoeiros. O cão sentado na neve, está imóvel, os olhos fixos na entrada. Quando os fareja, abana o rabo, mas não se mexe. O velho examina os rastos da raposa, atentamente.

- Está manca das patas dianteiras. Se calhar, levou tiro.

- Ou encontrou lobo.

- Ou isso, catano!

O rapaz chama o cão. O cão não se mexe. O velho faz um sinal com a mão.

- Espera, que eu vou ver a saída de riba, não vá ela fugir por lá.

O rapaz acena com a cabeça e o velho afasta-se. O rapaz pega o cão ao colo e recua sobre as pegadas do velho. Na neve ficam apenas dois rastos. Um de ida, outro de volta. Pouco depois o velho dá o sinal. Um pio de mocho prolongado. O rapaz solta o cão.

- Aboca, Farrusco!

O cão corre e entra na cova, e o rapaz encosta-se no tronco dum vidoeiro. Vai dar um colete de truz, ora se vai. Engatilha a espingarda e apoia-a no braço esquerdo, pronta a atirar. Pingos de neve derretida caem-lhe na cabeça e no pescoço, mas ele não se mexe, os olhos fixos na entrada da cova. O velho está certo, caralho! Caniçada que se fôda! Na semana que vem, se a cadeia da Portela não abrir... Uma aragem perpassa-lhe pela nuca e o rapaz sente o cano duma arma a encostar-se ao pescoço. Puta que o pariu! O cano afasta-se e o rapaz volta-se. Atrás do vidoeiro, a mauser em ponto de fogo, um guarda olha para ele e ri-se. O rapaz aponta a espingarda ao chão.

- Pode abaixar a arma, carago! O cão está lá dentro.

O guarda aponta as pegadas em volta da laje.

- Raios! O outro?

O rapaz ri-se.

- Carago! Que outro?

- Quem fez isto, raios? Foi o cão?

- Fui eu que tapei a saída de riba. Pode ir ver, se quiser, carago!

O guarda estende a mão.

- Passa a arma. Mas cautela, raios! Cautela, que...

O rapaz segura a espingarda pelos canos e entrega-a ao guarda. O guarda afasta-se e pega num punhado de neve, e inutiliza as espoletas. A seguir, encosta-a no tronco dum vidoeiro e olha em redor. Tem mais de cinqüenta anos e é gordo, com a cara riscada de veias avermelhadas e os olhos empapuçados, como um sapo.

- Agora, raios, ala!

O rapaz não se mexe. O guarda dá dois passos, mas o rapaz continua sem se mexer. O guarda recua e encolhe os ombros.

- Raios! Pra mim, tanto se me dá como se me deu.

Levanta a mauser e mira o peito do rapaz.

- Três segundos pra andares.

O rapaz aponta a entrada da cova.

- E o cão, carago?

O guarda encolhe os ombros.

- Um...

- Carago! Es...

- Dois...

- Mãos pra riba, catano!

A voz do velho soa atrás do guarda, seca como um tiro. O guarda deixa cair a mauser e levanta os braços e o velho aproxima-se. O rapaz sorri e esfrega as mãos com força.

- Você demorou, carago!

O velho ri-se.

- Catano, rapaz! A pior coisa que há é uma pessoa ter a certeza que ganhou e não ganhar.

Faz uma pausa e volta-se para o guarda.

- Cartucheira, catano!

O guarda desafivela a cartucheira e deixa-a cair na neve. Conhece a fama do velho e sabe que ele nunca ameaça em vão. O velho sorri.

- Rapaz, descarrega a arma desse cabrão, catano!

O rapaz apanha a mauser e descarrega-a, e pega a cartucheira. O velho aproxima-se do guarda. Empurra-o com os canos da espingarda e encosta-o no tronco dum vidoeiro. O guarda, apesar do frio, sua. O velho sorri.

- Catano, rapaz! Sabes quem é este cabrão?

- Sei, carago! É do posto da Portela.

O velho pára de sorrir e os olhos quase se fecham.

- É. É do posto da Portela. É do posto da Portela, catano, mas também é o filho da puta que leva a metade de tudo que se passa na fronteira.

- Eu sei, carago! Mas nunca lhe paguei nada.

- Tu nunca pagaste, eu nunca paguei, mas o Zifa da Zefa pagou a vida inteira, catano!

Faz uma pausa e olha para o guarda.

- Escuta bem o que te vou dizer, ó cabrão! O Zifa da Zefa morreu e o novo cabo foi promovido. Contas acertadas. Agora, se alguém subir a serra outra vez, não desce mais. Nem pra entrar no cemitério, catano!

Gotas de suor escorrem pelo rosto balofo do guarda e brilham como neve derretida. O velho cospe na neve e aponta a mauser.

- Dá cá essa arma, rapaz.

O rapaz entrega a mauser ao velho. O velho retira o percussor e guarda-o no bolso da samarra, e quebra a coronha na laje. Atira o cano na neve e olha para o guarda.

- Ala!

O guarda treme, mas não se mexe. Tem os braços esticados por cima da cabeça e os olhos esbugalhados, fixos no cano da mauser, caído na neve. O velho ri-se.

- É por mor da arma? Tens medo de chegar ao posto sem ela?

Encolhe os ombros e sorri.

- Pois pra mim tanto se faz, catano!

Levanta a espingarda e aponta, e a neve ao lado do guarda salta no ar. O velho não precisou de dar segundo tiro. Quando o último floco pousou no chão, o guarda corria, encosta abaixo, sem capacete e com os braços a abanar, tentando equilibrar o corpo gordo. O rapaz aponta-o e ri-se.

- Carago! Parece um pato.

O velho aponta o cano da mauser, caído na neve.

- Enterra isso, catano!

O rapaz enterra o cano junto da laje e o velho carrega a espingarda.

- Vamos.

O rapaz aponta a entrada da cova.

- O cão, carago?

- Catano, rapaz!

O rapaz recarrega a espingarda e troca as espoletas, e ambos descalçam as chancas, e andam em círculos até confundir todos os rastos. Depois, aproveitam as pegadas do guarda e saem do Fojo. Seguem o primeiro ribeiro que encontram e continuam a subir.

- Quase mataste aquele cabrão, carago!

O velho ri-se.

- Nunca errei um tiro na vida, catano!

Acende um cigarro e tira uma fumaça profunda.

- Com estes cabrões, é melhor assustar do que matar. Dá mais medo, catano!

Uma hora depois o rapaz pára, a cara roxa de frio e os cabelos empastados de neve.

- Carago! Tenho os pés gelados.

O velho aponta a encosta sem árvores, que sobe até aos cumes.

- Ainda podem dar conosco, catano!

Até onde a vista alcança, agora, só os caules dos zimbros e dos tojos furam o manto branco da neve. Os homens continuam a subir e, meia hora depois, avistam a última lombada da encosta. A seguir a ela começa o muro que cerca a reserva das cabras e das corças, e termina na fronteira. O velho pára.

- Pronto, catano! Agora, só por muita sorte é que nos hão-de encontrar.

Enterram a cartucheira e as balas do guarda ao pé do muro e calçam as chancas. O gelo das pedras faísca e o ar rarefeito obriga-os a respirar pela boca. O velho olha o céu sem nuvens e as águias a planar em círculos vagarosos.

- Catano! Vai nevar.

- Tem jeito, carago!

- Está muito parado. Quando escurecer, cai neve.

Encosta-se no muro e abre a braguilha.

- Vou mijar, catano!

O rapaz olha o caminho, ladeado pelo muro, que serpenteia pela encosta. Pouco antes da última curva alguma coisa se mexe. Encoberto pelo muro, o rapaz anda alguns metros. São dois guardas. O rapaz corre de volta.

- Vêm aí dois guardas, carago!

O velho olha os vultos.

- Puta que os pariu, catano!

- Carago! E agora?

O velho encolhe os ombros e abotoa a braguilha.

- A ver vamos.

- Será por mor da morte do outro cabo, carago?

- Cá se fazem, cá se pagam, rapaz.

O velho cala-se e examina os guardas com atenção.

- Vamos, catano! Pode ser que passem sem nos ver.

Saltam o muro e descem alguns metros, agachados, encobertos pelas pedras. Param ao lado duma touceira coberta de neve e o velho aperta o braço do rapaz.

- Se nos virem, catano, tu corres pra baixo, que eu corro pra riba.

O rapaz abana a cabeça.

- Isso, nem à...

O velho puxa-lhe o braço com força.

- Faz o que eu digo, rapaz. Quando chegar o teu dia, catano, tu corres pra riba.

Os guardas andam devagar, a conversar e a fumar, com as mausers em bandoleira e os capacetes a faiscar, batidos pelo sol. Ao longe, na meia encosta, o cão começa a ladrar. O rapaz olha para o velho. O velho engatilha a espingarda.

- Catano! Cão dum raio!

Os guardas param e, um deles, aproxima-se do muro.

- Ó pá, não foi um cão?

O outro guarda atira a ponta do cigarro por cima do muro e olha a meia encosta, atentamente.

- Sim. Pareceu.

O primeiro guarda anda alguns metros e, de repente, pára.

- Ó, pá! Alguém mijou aqui!

O segundo corre e examina a neve ainda amarelada.

- Ainda estão por aí amoutados, pá. De certeza!

O primeiro guarda engatilha a mauser e encosta-se no muro.

- Ficas tu aqui, que eu vou cercá-los lá por baixo, pá.

Atira a ponta do cigarro por cima do muro e corre pelo caminho. O cão ladra de novo, já mais perto. O velho roga-lhe uma praga em voz baixa e faz sinal ao rapaz. Levantam-se, num pulo, e começam a correr. O velho, encosta acima, e o rapaz, encosta abaixo. O segundo guarda vê-os e grita ao companheiro.

- Aí vai um, pá.

O velho já quase dobrava a lombada quando o segundo guarda aponta e dá o tiro.


3
O velho aparece somente à noite. Cansado, com a cara e as mãos roxas de frio, e a roupa toda molhada. O cão fareja-lhe as pernas e lambe-lhe as mãos, e o velho acaricia-lhe a cabeça e as orelhas. A mulher levanta-se.

- Venha, padrinho. Sente-se, caraças!

O velho encosta a espingarda na parede e senta-se, e a mulher tira a cabaça de dentro do forno e senta-se também. O velho bebe alguns tragos e acende um cigarro, e volta-se para o rapaz.

- O cabrão conheceu-te?

- Não. E o outro, carago?

O velho bebe mais um trago e recosta-se no escano.

- Matei-o, catano!

O rapaz pega na cabaça e bebe também.

- Carago! O que é que você vai fazer?

O velho estende os braços por cima do lume e encolhe os ombros.

- Vou esperar que neve, catano, e vou atravessar a fronteira.

- Eu é que devia correr pra riba, carago!

- Pra quê? Pra matares aquele cabrão?

- Matava-o, carago!

O velho sorri. Levanta-se e abre a porta e olha a escuridão, com o vento já a assobiar no pinhal. O rapaz levanta-se também e aproxima-se do velho.

- Carago! Quer que eu vá com você?

O velho fecha a porta e senta-se.

- Pra quê, catano?

- Sempre somos dois, carago!

O velho ri-se.

- Catano, rapaz! Quem mata um mata dez!

O rapaz senta-se. O velho tira uma fumaça profunda e olha para ele.

- Rapaz, alguém tem de cá ficar, catano!

O rapaz não responde e o velho sorri e dá-lhe uma palmada no joelho.

- Os cabrões vão subir outra vez. Sempre sobem, rapaz. Por mor disso, é que tem de cá ficar alguém que os obrigue a descer, catano!

Recosta-se no escano e aconchega a samarra ao corpo.

- No mês que vem, rapaz, é preciso abrir a cadeia da Portela.

O rapaz olha para o velho e acena com a cabeça.

- Eu sei, carago!

O velho ajeita-se no escano e fecha os olhos. A mulher abraça o rapaz e o gato levanta-se e espreguiça-se, e aninha-se no colo dela. O cão fareja as pernas do velho e deita-se na cinza, com a cabeça em cima das chancas dele. Agora, era só esperar que nevasse.
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sábado, 11 de dezembro de 2010

Amo e odeio (Francisco Miguel de Moura)


A manhã é meu espelho:

– Odeio as coisas feitas,

quero-as todas por fazer.

Odeio o que é eleito,

quero é constrangê-lo.

Odeio o preço de mercado,

quero a liberdade sem recado.

Perfeição, repetição, alienação...

Odeio o único e o todo,

amo apenas o singular

entre tantos e outros.

Quase morro de tédio

por ter criado objetos, abjetos

porque não tinham arte.


Amo ser pleno e livre,

com uma felicidade sem remédio.


Ou o dia que não se repete.
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