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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vinho, Vi e Perdi...* (Raymundo Netto)



Tempos há, amargando homérico pileque, lancei-me ao cálice da abstemia. Dia desses, por sua vez, diante da convocação de amigas a pactuar música e poesia regadas ao tinto e seco, hesitei, e após atrapalhada engenharia de sacar rolhas, libertamos os deuses embotelhados, e os tomei à boca rósea e cristalina, parcimonioso, enquanto eles, ao contrário, tomaram-me por inteiro num único gole, mais ligeiramente do que língua de camelô. A noite, do que me lembram, fora linda, mas na manhã seguinte aportei em casa, sol lumioso, indo-me bêbado pela escadaria piramidesca, notoriamente trôpega também, dando-me os braços e corrimões, ao sentir-me o estômago querendo lamber os pés.

Na ébria ilusão de que molhando-me passaria o mal-estado, entrei no box do chuveiro, e, acho, apaguei! Horas mal dormidas e irrecuperáveis, já as sabia... No repente, acordei com água lá pelo pescoço e apavorei-me. Como poderia isto acontecido? Tentei abrir a porta do box e sair, mas pesou-me a lembrança da reprimenda: “Você não consegue tomar banho sem molhar o banheiro?” Ora, se com um pinguinho aqui e acolá era aquele deusnosacuda, que dirá se eu banhasse a casa inteira com aquele aguaceiro? Não, ou me sairia com um plano B ou, juro, morreria ali, afogado como um peixe.

Assim, prendi a respiração, mergulhei e descobri que a culpa de tudo aquilo fora de alguém — provavelmente as crianças em seus intermináveis banhos — que fechou a tampa do ralo. Ah, se eu escapasse daquilo... Destampei-o, imediatamente, e a água escoou, como seria de se esperar, pela tubulação. Entretanto, por inexperiência, nunca passara por tal situação, esqueci de me afastar e fui colhido num redemoinho gorgolejante d’água que me arrastou cano abaixo.

Por que não nadei? Meu amigo, nunca aprendi a nadar. Aliás, também nunca aprendi a beber, dirigir, assobiar, fazer bola de chiclete e andar de bicicleta, restando-me hoje apenas escrever, coisa que alguns afirmam, também não sei, e têm lá as suas razões...

No aperto sifonado, desacordava, quando passou-me às vistas um filme, assim mesmo como dizem, um curta decepcionante, quase apenas um trailer, e em preto e branco. Confusas imagens de meus inúmeros mundos obsoletos arrancados do peito pela desembaraçada capacidade de desprendimento e de inconclusão. A música gritava “Tempo, tempo, tempo, tempo, que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho”... e eu a respondia: pois que esta vida me venha bem devagar até restar-me apenas de tal tempo o seu ponteiro final.

Daí, súbito, despertei sentado à superfície de um box vazio de um tudo, exceto de um molambo pálido e nu, cuja alma pejada de inocentes pecados era banhada pelas córridas águas purificadoras gritando-lhe à meia mente a certeza de sua existência: errar, errar, errar e persistir no erro até que este, puro e besta, seja a única coisa mais certa deste mundo...


(*) baseado em Veni, vidi, vici (em português: "Vim, vi, venci"), frase do general romano Júlio César, em mensagem ao Senado após vitória na Batalha de Zela.


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Raymundo Netto que desconfia de tudo, mas acredita em qualquer coisa. Contato: raymundo.netto@uol.com.br Blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Natal (Emanuel Medeiros Vieira)


Naqueles natais


não havia peru defumado,


o irmão matava o bicho e tomava um gole de cana,


papai pegava “barba-de-velho” para fazer o presépio,


missa do galo, bonecas de pano, jogo de botão, bolinhas de gude.




Não, não é um poema sentimental.


Talvez nem seja um poema.


Almejava um texto satírico


(Ou estóico.)


Queria desdramatizar as obsessões:


não temos qualquer controle sobre o nosso destino, o futuro chegou depressa demais,


o livre arbítrio é sempre limitado.


Não, não me chamo Raimundo,


não gosto do gerúndio,


tudo já foi escrito sobre o natal.


Chega de chorumela!




Incorporo Clarice como uma entidade mediúnica:


A linguagem é o meu esforço humano.


Por destino tenho que ir buscar.


Por destino volto com as mãos vazias.




Mas quem quer saber “realmente” de literatura?


Os que a amam fundamente precisarão criar uma seita de iniciados?


(Não, não falo dos cadernos dois, da grande mídia, do autor ser valorizado apenas pelo selo da editora que o publica, das panelinhas, das feiras literárias, dos “prêmios” combinados previamente, da compulsão em aparecer e ficar famoso.


Isso é notoriedade, não literatura – vaidade vã.)




Shoppings cheios – como as novas catedrais do consumo,


pacotes, gente estressada:


tudo parece um inferno com ar condicionado.


“Uma festa”, dizem: é preciso acreditar,


Todos serão gentis, e depois esquecerão a ternura até o próximo natal, e a indústria precisa se renovar – o dinheiro, sempre ele.


As mães, como os garotos, querem celulares de última geração e eletroeletrônicos da moda.


Acabaram-se as vendinhas de antigamente.


Em troca: o sexo banalizado, a morte estúpida de todos os dias no noticiário,


Tudo descartável: gente, bolsas, jóias,


O namoro é para uma noite, “a fila precisa andar”, proclamam.


Será esta a noção de um novo inferno, e ainda não percebemos?


Custamos tanto a entender!


Não é só a política que ficou irrelevante: também a própria existência humana.


(“Fazes um discurso”, adverte um promotor interno.


Fico quieto e ele arremata: “Dás voz a um novo moralismo”.)


O nobre representante do Ministério Público diz que “isso é nostalgia”.


Talvez seja apenas busca de plenitude.


Repito: plenitude – não perfeição.




Não era shopping, eram as lojinhas perto do mercado na ilha,


naquele 24 de dezembro tão remoto ganhei um sapato,


e para a minha felicidade maior, anos depois, uma bicicleta Monark, aro 28.


Mudou o natal?


Rezávamos em frente ao presépio, e juntos íamos à missa do galo.


Mudei eu?


(Todos perguntam.)


Mudamos todos.


Sim, fomos ficando velhos, outros morreram no meio do caminho.


De algum lugar bem fundo, pergunto por “eles”.


Não, há muito já não estão aqui.


Morreram pais, morreram mães, morreram irmãs, morreram amigos.


Por onde anda o Jarbas, que fazia uma supimpa garopa ensopada?


Onde estão Símon, Ênio, Aristeu, Rosana, Adolfo, Motta, Alberto, Thiaguinho, Ivan, Ronaldo?


E os outros – tantos?


Desapareceram da terra – só isso –, e nunca mais.


É o que chamam de morte.


Alguma entidade maior me fez depositário da memória da tribo.


Às vezes, tento renunciar à obrigação, mas a imposição é irrevogável,


até chegar a minha vez, quando – quem sabe –, outro pegará o bastão.


O passado escorre úmido,


contamina o presente,


ambos enlaçados, o futuro está ali na esquina,


e o fim do mundo é depois de amanhã.




São 18 horas, “Ave Maria”,


Tento congelar o tempo – cristalizá-lo, para ele ficar sempre comigo,


converter esse precioso instante em sempre,


além de mim, além da vida, até o pó que serei.


Anoitece.


Me lembro de um piano numa tarde calma, de um subúrbio, de um pão quentinho, de uma cadeira de balanço, de um fogão de lenha, de uma tainha frita, de uma estação de trem, de um pé de amora, e também do mar – sempre ele.


O que é o tempo?


“O que é o tempo?


Se ninguém me perguntar, eu sei;


Se quiser explicá-lo, já não sei”, socorre-me Santo Agostinho (354-430).


Chamo Freud (1856-1939):


O delírio é uma tentativa de cura do sujeito frente à catástrofe subjetiva, uma nova maneira de se vincular à realidade perdida.


O que tem isso a ver com o natal?


Tudo.


E nada.


O que é tempo?


(Tento me consolar pela redundância.)


Parodiando tantos que me antecederam:


o que foi já não é,


o rio não é o mesmo,


o menino talvez esteja naquela pele enrugada,


mas isso é apenas um álibi compensatório,


que a coisificação do mundo já não contempla.


Menino na pele enrugada?


Pássaro noturno?


(Meras imagens desgastadas, inútil lirismo crepuscular?)


Fomos ficando para trás:


sou um dos últimos sobreviventes de uma raça em extinção:


a dos humanistas epistolares.




Mas também saberei rir nessa outra ceia, tantos anos depois,


com as pessoas amadas,


pois é preciso saber rir e não se dar muita importância.


Brindaremos


à vida, sim, à vida.


mesmo que a morte nos contemple naquela janela – ela sempre tem mais tempo.


O rio?


Segue o seu curso.




(Salvador, dezembro de 2010)
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