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sábado, 18 de dezembro de 2010

Pra não morrer com o sangue dentro (Alaor Barbosa*)

(Alaor Barbosa)

Dia 9 de dezembro que vem vou receber o Troféu Goyazes, da Academia Goiana de Letras, por minha obra de romancista. Honrosíssima premiação, que vem me causando, desde que dela fui comunicado por Miguel Jorge, generoso autor da proposta, um imenso bem moral. Como disse, de modo lapidar, o grande Machado de Assis: “Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola”.

A vida tem sido, em considerável aspecto, generosa para comigo. Premiações importantes, elogios autorizados e homenagens consistentes em honrosas eleições para entidades de escritores, além da participação em cinco antologias de contos feitas por autores muito competentes, me proporcionaram um certo e benfazejo reconhecimento do meu trabalho literário, iniciado há mais de cinqüenta anos. Trabalho que se pode dizer não ser pouco numeroso: no campo da ficção, quatro livros de contos, mais um inédito, e cinco romances (um deles em processo de editoração), mais três em elaboração.

Apesar do bom acolhimento recebido por minha obra literária, sou obrigado, contudo, a confessar que sofro forte ressentimento, mágoa mesmo, de verificar que meus livros não são lidos por mais gente do que a muito pouca, assim me parece, que já leu algum ou alguns deles. Em outras palavras: me dói ver a escassa penetração dos meus livros entre os leitores de literatura existentes no Brasil. Esses leitores, sabemos todos, são proporcionalmente muito poucos. Aqui em Goiás, por exemplo, segundo me informou um editor, eles eram, em 1999, seiscentos - em uma população bem superior a quatro milhões. Percentagem insignificante. E é bem possível e mesmo provável que esse número de seiscentos leitores tenha diminuído. Em onze anos, a televisão (na sua maior parte) com a sua extensa programação deseducativa e alienante, as drogas entorpecentes cada vez mais difundidas e o futebol convertido em ópio do povo, em conjugação com outros fatores, tiveram bastante tempo e espaço para atuar e produzir terríveis efeitos destrutivos contra a indefesa coletividade brasileira. Também a maciça propaganda comercial deve ter atingido o seu objetivo de convencer muito mais gente de que – triunfante filosofia estúpida! - ser feliz é comprar bons automóveis e beber chope ou cerveja de sexta-feira a domingo. Parece mesmo que o número de livrarias vem diminuindo no Brasil – nas capitais, pois o interior do País (talvez com exceção do de São Paulo, o que paradoxalmente não logrou livrar esse estado de ser um dos campeões brasileiros do crime) tem sido sempre um tristíssimo deserto de livros. (Nas cidades goianas, afora a nossa Capital, não existe uma só livraria.) Mas não ignoro que, apesar de tudo, tem livro que consegue ser comprado e presumivelmente lido, mesmo nos dias atuais, em tiragens consideráveis. Esclareço que esse fato não me excita nenhuma inveja ¬– sentimento que jamais me acometeu: sempre gosto de ver que existe escritor que consegue escapar da contingência e regra da escassez geral de aceitação e difusão. Mas é claro que fico decepcionado de ver que meus livros, escritos e reescritos dezenas de vezes com extenuador esforço e severíssima atenção, todos bem recebidos por importantes escritores e críticos literários (José Edson Gomes, Modesto Gomes, Antônio Olavo Pereira, Brasigóis Felício, Nilza Diniz Silva, Zilda Diniz Fontes, Gilberto Mendonça Teles, Ney Teles de Paula, Carlos Drummond de Andrade, Italino Peruffo, Hélio Pólvora, Juscelino Kubitschek de Oliveira, Guido Heleno, A. G. Ramos Jubé, José Mendonça Teles, José Liberato Povoa, Antônio Possidônio Sampaio, Euclides Marques de Andrade, Dalila Teles Veras, Bernardo Élis, Jerônimo Geraldo de Queiroz, Ivair Lima, Mário Ribeiro Martins, Gabriel Nascente, Wilson Martins, Ronaldo Cagiano, Nelly Novaes Coelho, Manoel Lobato, Manoel Hygino dos Santos, José Leão de Souza Filho, Adelto Gonçalves, José Maria e Silva, Fernando Py, Paulo Dantas, Dario Abranches Viotti, João Carlos Taveira, Antônio Olinto, Enéas Athanázio, Euler Belém, Geraldo Coelho Vaz, Alan Vigiano, Cyl Galindo, Danilo Gomes, Ricardo Lísias, Maurício Melo Júnior, Nelson Hoffman, Licínio Leal Barbosa, Joanyr de Oliveira, Elizabeth Caldeira de Brito, Iram Saraiva, Anderson Braga Horta, Kori Bolívia e vários outros), ocupam posição de marginalidade dentro do nosso mundo literário. Não são acolhidos por este poderoso e incontrastável deus do mundo capitalista que é o Mercado. Que deus tremendo! Um Moloch que a tudo avassala, tudo domina, tudo promove ou anula de acordo com inescrutáveis segredos e métodos. Diante desse moderno deus onipotente, eu, que ainda por cima aborreço os deuses, me deparo inerme e incapaz de desafiá-lo e vencê-lo. Sou um autor meio clandestino ou secreto no panorama do mercado livreiro. Um “outsider”. Me sinto injustiçado. Mas penso que este é, a esta altura, um problema sem remédio. Por isso mesmo não espero nem mesmo alguma reparação da posteridade – consoladora ilusão de muitos escritores que se julgam incompreendidos ou insuficientemente aceitos pelos seus contemporâneos. Penso que o mais provável é que a posteridade sancione e homologue o que sucedeu ao autor em vida e até mesmo recrudesça no pouco interesse ou na indiferença, negando-lhe o pouco êxito que acaso o afligiu enquanto vivo e terminando por sepultá-lo em perpétuo esquecimento inexorável. O Tempo é inclemente. Ainda bem que eu, felizmente, estou um tanto salvo desse mau destino graças à solidariedade de numerosos colegas escritores que me acolheram para sempre em várias academias. A relativa imortalidade acadêmica, essa eu desfruto. (Notem que estou escrevendo com inconformismo, mas também com saudável bom-humor.)

Sei - porém isso não me consola - que não estou sozinho nesta situação de precariedade e difícil solidão no mercado. Sem falar de amigos e conhecidos meus, tenho observado que mesmo os autores tradicionalmente consagrados da literatura do mundo são pouco lidos. É duro notar que Dante Alighieri, Cervantes, Tolstoi, Balzac, Stendhal, Herman Melville, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, o meu particularmente estimado William Saroyan e dezenas e centenas de autores que admiro estão cada vez mais abandonados. Ao menos no Brasil. Os escritores brasileiros também vão sendo alcançados pela ação negativa do descaso em cooperação com a inapelável destrutividade do Tempo. Quase ninguém mais lê os contos - não reeditados – de Mário de Andrade, de Alcântara Machado, de Simões Lopes Neto, do nosso goiano Hugo de Carvalho Ramos, do talentosíssimo Bernardo Élis, do admirável Carmo Bernardes. Ou os romances de Aloísio Azevedo e Afrânio Peixoto e mesmo de Graciliano Ramos. (Estou citando a título meramente exemplificativo. Esta lista eu a poderia espichar para uma centena de nomes.) Ultimamente tenho adquirido, pela internet, em sebos providenciais, dezenas de livros bons da literatura brasileira que se acham, há mais de quarenta, cinqüenta anos, esquecidos. Nunca ouço ou vejo falar que algum editor pensa em reeditá-los.

Esta é a situação, receio, que me aguarda para depois que eu morrer.

Não estou dizendo tudo isto com o propósito secreto de, provocando dó ou bondosa solidariedade, conquistar os leitores que ainda não granjeei. Faço este desabafo – que também é um protesto - por duas razões principais. A primeira é que considero uma atitude falsa e uma besteira inútil um escritor esconder as suas dificuldades de se ver editado e lido posando de bem-sucedido - na vida e na carreira. Esse ingênuo comportamento tático me lembra aquele “Poema em linha reta” que Fernando Pessoa atribuiu ao seu heterônimo Álvaro de Campos: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Ora, eu num sou campeão de nada. Só tenho conseguido editar meus livros, desde que comecei a procurar editor (aos 18 anos de idade, em 1958) porque todo homem, por mais rejeitado que seja, sempre acaba conseguindo arranjar um amigo que com ele se solidariza e sempre alcança conquistar uma mulher que lhe dá carinho, consolo, conforto moral. Ainda bem que a vida é assim. Eu tenho tido a sorte de topar, ao longo da minha vida, com editores inteligentes e devotados que me editaram e editam por gostarem dos meus livros; mas são editores tão desprotegidos na vida, na condição de editores, quanto eu na qualidade de escritor: editores idealistas, que publicam livros por puro e exemplar amor à literatura. Cito um deles: Taylor Oriente, ao fundar, em 1967, a sua editora, em Goiânia, me disse que o fazia com a intenção precípua de editar livros meus; e enquanto sua editora existiu, cumpriu sua palavra, editando os cinco livros que lhe apresentei. E mais não editou porque mais não lhe levei. Editor poderoso - empresário bem estabelecido - me ignora. Muitos anos atrás uma editora grande do Rio me devolveu, sem abrir o pacote, os originais de um livro que eu lhe mandara. Casos assim acontecem numerosos a bem dizer todo dia. Por isto e por outras razões raramente tenho batido à porta das editoras poderosas. Falta de confiança na boa e suficiente qualidade literária dos meus livros? Não, absolutamente não. Confiança e uma saudável e justa pretensão não me faltam. Há um ano e pouco uma editora importante, a Dom Quixote, dizem que a mais prestigiosa de Portugal, editou um romance meu, Eu, Peter Porfírio, o maioral. Mas isso aconteceu porque esse livro foi escolhido dentro de um concurso literário internacional com mais de quatrocentos participantes. Sem esse concurso, não me ocorreria nunca a idéia de tentar fazer chegar livro meu à mesa dos editores da Dom Quixote.

Uma segunda razão deste desabafo/protesto é o propósito de me conservar digno de um elogio que meu pai me fez, não diretamente a mim, há muitos anos – em 1963. Ao saber que eu vencera uma certa dificuldade no Rio, meu pai (soube eu depois) declarou satisfeito a alguns amigos, em Morrinhos: “O Alaor não morre com o sangue dentro”. De fato, sempre que devo fazê-lo, tenho exercido o meu direito/dever de espernear – o folclórico “jus sperneandi”. Isso faz bem à saúde.


*Alaor Barbosa, jornalista e advogado, é autor do volume Contos e novelas reunidos e dos romances Vozes e silêncios em Imbaúbas: a morte de Cornélio Tabajara; Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia; Belinha: uma lenda; Eu, Peter Porfírio, o maioral; e, a sair, Vasto mundo.
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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vinho, Vi e Perdi...* (Raymundo Netto)



Tempos há, amargando homérico pileque, lancei-me ao cálice da abstemia. Dia desses, por sua vez, diante da convocação de amigas a pactuar música e poesia regadas ao tinto e seco, hesitei, e após atrapalhada engenharia de sacar rolhas, libertamos os deuses embotelhados, e os tomei à boca rósea e cristalina, parcimonioso, enquanto eles, ao contrário, tomaram-me por inteiro num único gole, mais ligeiramente do que língua de camelô. A noite, do que me lembram, fora linda, mas na manhã seguinte aportei em casa, sol lumioso, indo-me bêbado pela escadaria piramidesca, notoriamente trôpega também, dando-me os braços e corrimões, ao sentir-me o estômago querendo lamber os pés.

Na ébria ilusão de que molhando-me passaria o mal-estado, entrei no box do chuveiro, e, acho, apaguei! Horas mal dormidas e irrecuperáveis, já as sabia... No repente, acordei com água lá pelo pescoço e apavorei-me. Como poderia isto acontecido? Tentei abrir a porta do box e sair, mas pesou-me a lembrança da reprimenda: “Você não consegue tomar banho sem molhar o banheiro?” Ora, se com um pinguinho aqui e acolá era aquele deusnosacuda, que dirá se eu banhasse a casa inteira com aquele aguaceiro? Não, ou me sairia com um plano B ou, juro, morreria ali, afogado como um peixe.

Assim, prendi a respiração, mergulhei e descobri que a culpa de tudo aquilo fora de alguém — provavelmente as crianças em seus intermináveis banhos — que fechou a tampa do ralo. Ah, se eu escapasse daquilo... Destampei-o, imediatamente, e a água escoou, como seria de se esperar, pela tubulação. Entretanto, por inexperiência, nunca passara por tal situação, esqueci de me afastar e fui colhido num redemoinho gorgolejante d’água que me arrastou cano abaixo.

Por que não nadei? Meu amigo, nunca aprendi a nadar. Aliás, também nunca aprendi a beber, dirigir, assobiar, fazer bola de chiclete e andar de bicicleta, restando-me hoje apenas escrever, coisa que alguns afirmam, também não sei, e têm lá as suas razões...

No aperto sifonado, desacordava, quando passou-me às vistas um filme, assim mesmo como dizem, um curta decepcionante, quase apenas um trailer, e em preto e branco. Confusas imagens de meus inúmeros mundos obsoletos arrancados do peito pela desembaraçada capacidade de desprendimento e de inconclusão. A música gritava “Tempo, tempo, tempo, tempo, que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho”... e eu a respondia: pois que esta vida me venha bem devagar até restar-me apenas de tal tempo o seu ponteiro final.

Daí, súbito, despertei sentado à superfície de um box vazio de um tudo, exceto de um molambo pálido e nu, cuja alma pejada de inocentes pecados era banhada pelas córridas águas purificadoras gritando-lhe à meia mente a certeza de sua existência: errar, errar, errar e persistir no erro até que este, puro e besta, seja a única coisa mais certa deste mundo...


(*) baseado em Veni, vidi, vici (em português: "Vim, vi, venci"), frase do general romano Júlio César, em mensagem ao Senado após vitória na Batalha de Zela.


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Raymundo Netto que desconfia de tudo, mas acredita em qualquer coisa. Contato: raymundo.netto@uol.com.br Blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com
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