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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Origem da ciência (Manuel Soares Bulcão Neto)

(Biblioteca de Alexandria)

Há algum tempo, apareceu no meu sítio um galo que punha ovos. Embora raquítico, apresentava a mesma crista alta e andar majestático dos demais. Só que, vez por outra, juntava-se às galinhas e expelia frágeis ovinhos. “Vige, isso é coisa do Diabo!”, exclamou o caseiro no dia em que me mostrou o aleijão. Sua mulher, pentecostalista, propôs exterminar o agouro, o que não foi necessário: dias depois, de tanto apanhar do galo alfa, pendurou os esporões.

Pois bem: semana passada estava a folhear o livro “A nova aliança” dos físicos Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, quando, para minha surpresa, na parte que trata das origens da ciência moderna, deparei-me com um trecho sobre a reação dos homens às anomalias. O exemplo dado? Galos que põem ovos. Afirmam os autores que tal reação é (pasmem!) determinada menos por instinto do que pelas crenças religiosas; que, na Ásia medieval, criaturas anômalas ou eram discretamente escondidas pelas autoridades confucianas (atitude idêntica a dos pitagóricos que, ao descobrirem os números irracionais, proibiram sua divulgação) ou, então, aclamavam-nas como manifestações divinas e mesmo como deuses efêmeros. Já na Europa cristã, nessa mesma época, animais monstruosos eram queimados vivos em espetáculos públicos — por serem “antinaturais”, isto é, contrários às “leis da natureza: leis de Deus”.

Vê-se, na postura cristã, peculiar sacralização das leis naturais sem a qual deficilmente teria se desenvolvido, nas primeiras universidades e mesmo em mosteiros – e entre indivíduos mais inquietos – a pulsão epistemofílica voltada para seu conhecimento, isto é, o espírito científico. Pois, em que consiste a atividade do cientista? — Analisar metodicamente a pluralidade dos fenômenos naturais e dela extrair padrões, regularidades cada vez mais gerais, leis.

É de considerar, ainda, a influência fundamental do racionalismo aristotélico – sua Física, inclusive – na Escolástica de São Tomás de Aquino. Tanto que, para esse pensador, a “Razão” é divina (vale lembrar, “en passant”, aquele vestígio da cultura helenística no primeiro versículo do Evangelho de S. João: “No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus” – Logos: para Heráclito, “conjunto harmônico de leis”), de modo que não basta a Fé: absolutamente tudo pode ser explicado e justificado pela argumentação racional — daí o surgimento, na época, dos primeiros argumentos lógicos favoráveis à existência de Deus: o da causa primeira, o do desígnio, o ontológico… Aliás, foi com base nesses dados que o grande matemático do séc. XX, Alfred. N. Whitehead, afirmou que “a convicção instintiva… que há segredos a serem desvendados… Ela não parece poder encontrar sua origem senão numa fonte: a insistência medieval sobre a racionalidade de Deus.”

Há, de fato, um elemento de continuidade entre o Deus legislador cristão, a “Natura naturans” (Deus, segundo Spinoza) e a razão científica de Leibniz, Kepler, Isaac Newton… Por vezes, em atos falhos ou metáforas, cientistas com forte ranço antirreligioso mostram esse “continuum”: Freud, por exemplo, chegou a afirmar, mais ou menos com essas palavras, que “nosso deus, a ciência, é frágil, uma vez que não responde a todas as questões.”

Infelizmente, há outra característica comum, desta vez perversa, sempre pronta a se manifestar: a praga do fundamentalismo, o impulso para se converter em e se impor como pensamento único; de queimar todas as bruxas (descrentes, hereges, apóstatas…). Se foram cristãos puristas – à frente, o Bispo Teófilo – que incendiaram a Biblioteca de Alexandria, de outro lado, na primeira metade do século XX, igrejas foram destruídas ou transformadas em mictórios públicos por ateístas cientificistas. Vade retrum, Demônio de Laplace!

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Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 02/01/2011.
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sábado, 15 de janeiro de 2011

Noite com sátiros e bacantes (Nilto Maciel)



Nunca tive sonhos de doido. Não viajo ao Kilimanjaro nem me encontro com Jesus de Nazaré. Não enfrento leões nem me abraço com Salomé. Sou normal, tenho sonhos de funcionário público bem remunerado: passeio de carro novo, família numerosa e sadia, algum voo entre estrelas de quinta categoria, divertimento com beldades de Hollywood. Hoje, porém, sonhei com Pedro Salgueiro e Dimas Carvalho. Ora, dirão os leitores: Onde está a loucura? Todo escritor sonha com dois ou mais escritores. E ninguém vê nisso sandice. Muitos veem, isto sim, latente homossexualismo. A insânia está, meus amigos, no tempo e no espaço da história. Éramos romanos ou, se não tanto, cearenses em visita a Roma. Não a Roma de Silvio Berlusconi e Bento XVI, ou Benedictus XVI ou o alemão Joseph Ratzinger. Estávamos nos primeiros anos da era cristã. O Rex Iudaeorum tinham crucificado havia pouco tempo. Dominava o mundo o Big Brother Tibério. E Dimas dava explicações minuciosas: Não o chamem simplesmente de Tibério. O nome completo é Tibério Júlio César Augusto. A brincar, Pedro saiu a dar pulinhos e a gritar: “Morra, Tibério!” Um centurião, com cara de Benito Mussolini, seguido de 100 soldados, passava ao largo. Apavorado, Dimas balbuciou: Plínio, o Velho, o chamou de “tristissimus hominum”.