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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Contos cearenses (Fernando Py)




O escritor cearense Nilto Maciel faz chegar a esta seção o segundo volume de seus Contos reunidos (Porto Alegre: Editora Bestiário, 2010), que compreende os textos dos livros As insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de girafa na poeira (1999). O primeiro deles reúne contos de alcance e estilo variados, destacando-se principalmente pela apresentação de tipos curiosos ou maníacos, como o professor Mendes (em ‘Teoria do amor socrático’, p. 23), o paquerador João Canoro (em ‘A voz indecorosa’, p. 32), a esposa que sonhava (em ‘Sonhos’, p. 40), e outros mais. Os contos são ora são longos e minuciosos, como ‘Ícaro’ (p. 11) ou ‘Os comensais de Afonso Baio’ (p. 53), ora, na maioria, não ultrapassam página e meia. Alguns chegam apenas a ser um simples flash e nem sempre configuram propriamente um conto, com princípio, meio e fim, mas limitam-se a mostrar uma “cena”, como, p. ex., ‘Incubação’ (p. 20). Por outro lado, essa tendência ao conto curtíssimo leva o autor a uma peça em “cenas” como em ‘Mundo livre’ (p. 68), onde as seis cenas fazem parte de uma gincana e o desfecho, menos surpreendente do que poderia parecer a princípio, já indica uma faceta bem irônica do estilo veloz e breve dos contos de Nilto Maciel. Este é um dos aspectos de seu saudável inconformismo diante do que é “bem feito” ou “bonito”, e que muito valorizam a sua prosa.

Babel se compõe de narrativas bastante curtas, às vezes apenas flashes, como vimos na coletânea anterior. São narrativas que exploram um episódio breve, tratando de aprofundá-lo ou expondo toda a sua crueza. Além disso, o autor também explora a estrutura e a linguagem que emprega, com excelentes resultados. Já Pescoço de girafa na poeira compõe-se igualmente de contos muito curtos, em que Maciel também trabalha com modelos variados de ficção, indo das fantasias oníricas ao realismo mais cru, do flash mais imediato ao enredo desenvolvido em detalhes, tudo isso num estilo seguro de quem domina às maravilhas o nosso idioma. E se muitas vezes se compraz em citações eruditas, tais citações se harmonizam de tal modo no texto que é como se tenham feito sempre parte dele. O volume mereceu o primeiro lugar, na categoria conto, da Bolsa Brasília de Produção Literária em 1998, da Fundação Cultural do Distrito Federal. Convém ler e reler os contos de Nilto Maciel.

(Tribuna de Petrópolis, 21/1/2011)
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Retiro São Francisco (Emanuel Medeiros Vieira)



A cidade de Salvador é uma urbe belíssima. Primeira capital do Brasil, ela é portadora de uma tradição civilizatória. Como ocorre em outras cidades, a ganância, a especulação imobiliária, a compra de edis e de diversos agentes públicos que deveriam zelar pela capital baiana, estão deturpando o Plano Diretor da Cidade e toda a capital. A omissão da prefeitura, a cobiça insaciável e outros problemas degradam diariamente a chamada Boa Terra. Nenhum brasileiro pode se omitir. A Bahia é o Estado de Castro Alves, de Anísio Teixeira, de Glauber Rocha, de Raul Seixas e de outros grandes artistas. Salvador é um patrimônio humanista de todos nós. São Salvador, tão cantada por artistas e poetas, tão louvada pelos viajantes que aqui aportaram desde os primeiros tempos de sua criação, hoje está sendo devastada por construções e loteamentos. Como alguém indagou, por que permitir que o capital imobiliário se transforme cada vez mais num capital selvagem tocaiado pela corrupção? Lembro das leituras de Octávio Paz. O tempo arquétipo deixou de ser o passado e sua quimérica idade de ouro; por sua vez, o tempo fora do tempo, a eternidade dos anjos e dos diabos, dos justos e réprobos, foi desalojado pelo culto ao progresso.

Hoje, quero falar de outra grave ameaça. Querem derrubar a Casa de Retiro São Francisco. Ela está instalada no coração de Salvador, na Rua Waldemar Falcão, no populoso bairro de Brotas (um dos maiores da cidade), ao lado do Candeal. Como sublinhou um cronista, ela é um oásis de calma e sossego. É um “monumento aberto ao silêncio e à paz; uma fonte concreta daquilo que chamamos de ‘’qualidade de vida’. Aquele santuário, observou Jorge Portugal, “é um dos grandes bens espirituais e humanos que ainda restam de uma cidade estressada, corrompida, deformada, apartada, aviltada pela velocidade e o lucro. Esta cidade já se esqueceu de que foi criada para as pessoas e não o contrário”.

Conheci Salvador aos 21 anos, quando vim representar a AP do Rio Grande do Sul num congresso estudantil. Foi amor à primeira vista. Mas percebe-se a degradação perpetrada pelos “podres poderes” que têm muito dinheiro e nenhum escrúpulo. Precisamos resistir! Salvador não é Florianópolis. Tem, aproximadamente, três milhões e 600 mil habitantes, e é a terceira metrópole brasileira. A Casa de Retiro São Francisco é o resultado de uma “articulação do bem”, que contou com a doação de famílias baianas de boa vontade. Vale a pena conhecê-la e defendê-la. Pede Jorge Portugal: “Vamos dar um basta à especulação inconseqüente e aos falsos ‘bons negócios’ que só geram lucros para os poucos de sempre. Pela vida, pela paz, pela solidariedade e pelo sonho de uma cidade mais humana: vamos dizer em alto e bom som: a Casa de Retiro não!”.

É preciso mobilizar os vereadores do “bem”! Como reivindica uma cronista, os inimigos do verde e da paz devem saber que a cidade de Salvador tem dono: o povo.

Salvador, fevereiro de 2011
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