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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

As mãos mirradas de Deus (Marcia Barbieri*)



“Deus tem também seu inferno, seu amor pelos homens”
F.W. Nietzsche

A infância me traz um terço de contas inumeráveis, escorregando entre as membranas dos meus dedos, embora muitos desacreditem que exista algo entre um dedo e outro, além de minúsculos abismos. Sou um anfíbio me alimentando de rochas e lavas frias.

Ainda sonho com aquele homem bizarro, do cheiro rude da velhice desprendendo devagar da sua pele cinza, o tempo transforma a carne tenra num laboratório de horrores. O homem grande das mãos mirradas... Olhava e não compreendia os desígnios de Deus. A geometria torta a conceber desejos gordos para concretudes magras. A menor distância de um ponto ao outro é uma curva. Suas mãos finas e pequenas sustentavam um neto corado e robusto. As dualidades são sempre bárbaras... Naquela época as crianças me traziam um sentimento ruim, um ódio inexplicável, em forma de espinhos, sabe aqueles espinhos que vivem entrando em nosso pé e precisam ser retirados com agulha fina? É, era um incômodo assim. Mesmo hoje não as quero bem, há uma rivalidade muda entre nós. Guerra fria. E toda vez que vejo uma, acho suas cabeças grandes, vazias e desproporcionais, como grandes campos minados. Strawberry Fields Forever. Tento despistar a curiosidade insana dos meus olhos, mas eles sempre acabam nas extremidades. Então, novamente tenho diante de mim o homem das mãos mirradas... Alguém me grita:

- Lembra de mim?

Observo profundamente aqueles olhos azuis e tenho certeza de que eles já fizeram parte do meu mundo. Mas onde, quando, em que circunstâncias? Aqueles olhos de um azul raro não pareciam pertencer àquele rosto: delicado, anguloso e tão perversamente angelical.

- Olha bem pra mim. E aí?

Pensei que ela bem poderia ser protagonista de um daqueles filmes antigos, preto e branco, nos quais todas as mulheres eram anjos intocáveis. Andróginos. E seus olhos... Tão fora de órbita, flutuando num universo há muito esquecido.

- É impossível que não se lembre! O Juninho, meu irmão e você...

Como poderia me esquecer? O meu primeiro amigo. Os olhos, era isso, eram os mesmos.

- Claro, como ele está?

- É uma longa história... Triste história.

Não ousei perguntar. Não queria saber. Eu sei muito bem viver de lembranças... E elas eram muitas e boas. Amávamos como dois seres antes da criação, antes do bem e do mal.

Reflito e minha imagem é um quadro alucinado de Edward Munch. Sigo a fome, abro cada curva do meu intestino e ele dá voltas e voltas em torno de mim, como uma roda da fortuna girando sobre o próprio eixo. No jardim crescem os baobás, se espremendo numa realidade limitada, num tempo oco, sem espaço.

Rumino mitologias, o homem grávido. Também gravitam seres no meu ventre, na contradição plena do meu membro ereto, masturbam-me, as mãos diabolicamente mirradas de Deus...


*Marcia Barbieri é paulista. Formada em Port./Francês pela Unesp e pós-graduanda em Prática de Criação Literária. Tem textos publicados nas revistas literárias Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, O Bule e Meio Tom. É colunista das revistas literárias Caos e Letras e Sinestesia Cultural. Edita o blog: www.avidanaovaleumconto.blogspot.com . E-mail: marcia_barbieri@hotmail.com
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Desafiando o tempo (Tânia Du Bois)



Imagine como seria conviver com as atividades diárias, com os amigos e ainda ter tempo para se dedicar à leitura. Há quem desafie o tempo e a literatura e, além de desafiar, muitas vezes reduz, enfeita e conduz a sua utilização e a sua utilidade. Nas palavras de Jorge Tufic, “O tempo é a / corrosão / que parte do / nada e se / refaz do / nada”.

O tempo é fronteira entre o que lemos e o que ainda poderemos ler. Pergunto, quanto tempo teremos para ler tudo o que desejamos? Devemos buscar o equilíbrio ao montar a nossa agenda, pois nem sempre podemos prever o tempo necessário para as nossas leituras.

O tempo desafia e reflete a realidade: é preciso ler hoje, para melhorar amanhã. Prova disso são as inúmeras produções literárias realizadas com o intuito de desenvolver e envolver a história do tempo, de natureza filosófica, histórica, poética, científica e sociológica, onde só o amor e a cumplicidade pelas palavras podem operar.

A busca por um estilo de vida focado no tempo está no reencontro da obra com o escritor, onde o leitor já prevê a necessidade de mudar do superficial para o essencial, em uma redescoberta de prazeres.

Pedro Du Bois, em (DES)TEMPO, questiona: “Na verdade, nos preocupamos com o tempo: e o nosso tempo permanece intocado na (in)finitude do espaço, onde os escolhidos se lançam em eternidades”

Carmen Silvia Presotto, em DOBRAS DO TEMPO, desafia o tempo em lembranças: “Agitados abanos / lembram os laços da trança menina e / a expectativa da vida não preenchida. // ... Suspiro ao vento pelo primeiro dia.”

Lima Coelho, por sua vez, desafia o tempo entre o amor e lágrimas, em seu livro MARCAS DO TEMPO.

Jorge Luis Borges, em HISTÓRIAS DA ETERNIDADE, busca desafiar o tempo no sentido do rigor cronológico, “Entendi que sem tempo não há movimento (ocupação de diferentes lugares em diferentes momentos); não entendi que também não pode haver imobilidade (ocupação de um mesmo lugar em diferentes momentos)”.

Tais obras mostram a busca pelo passado, presente e futuro e, ainda, nos trazem o caminho do conhecimento de maneira simples e ao mesmo tempo profunda, pois vibrantes em uma mesma frequência.

O livro é atemporal e companheiro, pode ser interessante num determinado momento e ter outra função em outro, e ainda refletir sobre as questões do nosso tempo.

Desafiar o tempo é saber, de fato, para o que ele serve, é desejar que ele pare. Ou que ele possa andar, como em Saramago, “Não tenha pressa./ Mas não perca tempo.”; ou brincar como em Mário Quintana, “O tempo é apenas o ponto de vista do relógio.” Há o tempo do relógio, mas também seguimos o tempo que está dentro de nós, como o feito de sentimentos, que é o que verdadeiramente faz a nossa história, porque quando a imaginação trabalha, é insuperável...

O segredo de desafiar o tempo está na seriedade e eficiência da criação literária, tudo o que lemos faz parte da nossa formação, e o aproveitamento do tempo reside no encontro em que a sociedade se reconhece: equitativa, eficiente e culta; todos acreditando que a força está nos livros que desafiam o tempo.
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