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sábado, 5 de fevereiro de 2011

Eça de Queiroz em imagens (Adelto Gonçalves*)



I

Se hoje, ao contrário do que ocorre com Fernando Pessoa (1888-1935), Eça de Queiroz (1845-1900) já não desperta tanta admiração entre os leitores brasileiros, culpa maior cabe aos editores nacionais que só se preocupam em reeditar parte de sua obra quando a Rede Globo decide mandar ao ar uma minissérie ou telenovela com base em algum de seus romances. Mas que ainda há bastante espaço para livros que tratam da vida e obra ecianas não se discute. Basta ver o interesse que vem despertando Eça de Queiroz: fotobiografia: vida e obra (São Paulo, Leya, 2010), de A. Campos Matos, hoje, indiscutivelmente, o mais categorizado dos biógrafos do romancista luso, com mais de 15 títulos sobre o tema.

Publicado em 2007 pela Editorial Caminho, de Lisboa, esta segunda edição de Eça de Queiroz: fotobiografia: vida e obra sai no Brasil pela Leya, braço brasileiro do grupo à que também pertence a editora portuguesa. E sai não só revista e acrescida de extenso material iconográfico, reunindo mais de 700 imagens, como de um prólogo escrito especialmente para a edição brasileira que trata das relações do escritor com o Brasil.

Se nunca teve a oportunidade de colocar os pés em terras brasileiras, muitas são as ligações afetivas de Eça com o Brasil. Essas ligações começam com o seu avô paterno que, nascido em 1744 e jurista pela Universidade de Coimbra, foi ouvidor no Rio de Janeiro, onde viveu cinco anos. Foi durante a estada do ouvidor na cidade carioca que nasceu, em 1821, o pai de Eça de Queiroz, que também se graduou bacharel em Direito por Coimbra.

Nascido de uma relação não legalizada à época – só mais tarde os pais de Eça viriam a se casar –, o futuro escritor teve como ama uma brasileira de Pernambuco e a companhia de um criado mulato que o avô levara do Rio de Janeiro para o solar de Verdemilho, ao Sul do Porto. Aos 25 anos de idade, já cônsul de primeira classe por concurso público, por pouco Eça não ocupou o posto de cônsul na Bahia, cargo que seria seu por direito, mas que perdeu por injunções políticas de outro interessado. Foi cônsul em Havana, Cuba, e em Newcastle, ao Norte da Inglaterra, de 1874 a 1879, época em que travou um célebre embate com Machado de Assis (1839-1908) a respeito do trabalho literário.

II

Como lembra Campos Matos em seu alentado prólogo, na última fase de sua vida, Eça, morando em Paris, travou amizade com vários brasileiros ilustres, como Eduardo Prado (1860-1901), Domício da Gama (1862-1925), Graça Aranha (1868-1931), Olavo Bilac (1865-1918), José Veríssimo (1857-1916), Joaquim Nabuco (1849-1910) e o barão do Rio Branco (1845-1912). A essa época, participou, com textos de excelente qualidade, da Revista Moderna, cujo primeiro número é de 1897, publicação de propriedade de Martinho Carlos Arruda Botelho, filho do conde de Pinhal, fazendeiro paulista de Piracicaba que fizera fortuna com o cultivo de café.

Não param aqui as ligações de Eça com os brasileiros: sua fama correu o Brasil de alto a baixo, desde que, ainda jovem, passou a escrever com Ramalho Ortigão (1836-1915) As Farpas, folhetos de publicação periódica. Num deles, destilou sua irreverência com D. Pedro II, quando de sua viagem a Lisboa, talvez porque o visse um tanto jeca, ainda que o imperador fosse homem de grande cultura. Essas fustigadas mereceram grande reação de brasileiros, especialmente em Pernambuco, onde comerciantes portugueses foram alvo de represálias por conta das diatribes ecianas.

III

Fama mais justa veio em 1876 com a primeira edição de O crime do padre Amaro, que sacudiu o rame-rame em que se arrastava a literatura brasileira. Dois anos depois, com O Primo Basílio, e suas cenas pouco convencionais e ousadas, viria a causar polêmica, a ponto de Machado de Assis reagir negativamente em nome de um moralismo que, mesmo à época, pareceu um tanto despropositado. Tanto que outros escritores brasileiros saíram em defesa de Eça. O escritor veria sua fama disparar, tornando-se uma devoção quase religiosa a partir de 1880, quando teve início a sua colaboração regular na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, que se interrompeu só em 1897.

Muitos escritores medíocres e outros nem tanto iriam imitar o estilo inconfundível de Eça, a ponto de a idolatria pelo escritor luso avançar pelo século XX, superando até mesmo a fama tinha em Portugal. Campos Matos lembra, inclusive, que, em 1923, um filho de Eça, o jornalista Alberto, à época morando no Rio de Janeiro, surpreendeu-se com o culto a seu pai, ao ser convidado a participar da inauguração de um busto do escritor na cidade.

Campos Matos não duvida que o interesse por Eça no Brasil continue vivo, ainda que não o seja nos moldes de há 70 anos ou 80 anos. Ainda hoje não é difícil encontrar literatos que sejam capazes de repetir de cor trechos imensos de livros do autor de Os Maias (1888). O cearense Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010), que foi embaixador do Brasil em Lisboa de 1789 a 1983, autor de Era Lisboa e chovia (Rio de Janeiro, Nórdica, 1984), entre outros livros de temática eciana, era um desses. Aliás, Castro Alves contou com os conselhos e fotografias de Campos Matos para a elaboração de Era Lisboa e chovia.

IV

Conhecer a vida fascinante e, de certo modo, breve de Eça de Queiroz é possível por meio biografias bem elaboradas como Vida e obra de Eça de Queiroz (Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª ed., 1980), de João Gaspar Simões, ainda o grande biógrafo do romancista, e o recente Eça: vida e obra de José Maria Eça de Queirós (Rio de Janeiro, Record, 2001), de Maria Filomena Mónica, ainda que contra ambas possamos abrir aquele combate silencioso que todo bom leitor levanta contra passagens menos críveis, mas mais prazeroso é partilhá-la a partir de fotos e de todo material iconográfico que Campos Matos reuniu com rara felicidade. Sorte também que Eça tenha sido um dedicado cultor da arte fotográfica. Gostava de fotografar e igualmente de ser fotografado, recorrendo a poses, talvez porque já imaginasse que posava para a posteridade.

Numa época em que era costume posar com colegas e familiares em estúdios, Eça levou ao extremo o hábito de presentear amigos com fotografias com dedicatórias. Muitas destas fotos Campos Matos reuniu em seu livro, além de cartas do pai do escritor, bilhetes do próprio romancista e outras imagens de locais que fizeram parte da vida do autor e de sua geografia literária. Há ainda retratos de familiares e amigos, especialmente de seus companheiros do Cenáculo de Lisboa, e de autores cultuados por Eça.

Dos amores de Eça, há muitas fotos de sua esposa, Emília de Castro, e de Anna Conover, uma norte-americana que se apaixonou pelo então cônsul de Portugal em Havana, quando este ainda era solteiro. O affair com Anna e outro com Mollie Bidwell, de quem não se conhece fotografia, levaram Eça a uma estada de cinco meses nos Estados Unidos, em 1873-1874. Sem contar a foto da “bela desconhecida de Angers”, que levou Eça a freqüentar esta cidade francesa com certa assiduidade.

O álbum traz ainda fotos tiradas por Alberto Carlos da Costa Frazão, primeiro visconde de Alcaide (1869-1939), que estimulou em Eça o gosto pela fotografia e a quem se deve as melhores imagens do escritor, de seus familiares e de alguns amigos feitas no jardim da casa da Avenue du Roule, em Neuilly, em Paris.

V

O arquiteto A. Campos Matos tem um vasto currículo eciano, que começou com Imagens do Portugal queirosiano (1976). Foi autor em grande parte do Dicionário de Eça de Queiroz, publicado em 1988, que deu lugar a uma edição aumentada em 1993 e, em 2000, ao Suplemento ao Dicionário de Eça de Queiroz. Publicou ainda Eça de Queiroz-Emília de Castro, correspondência epistolar (1995) e, posteriormente, Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em Havana: 1873-1874 (1999).

É também autor de Diálogo com Eça de Queiroz (1999), A Casa de Tormes, inventário de um patrimônio (2000), Viagem no Portugal de Eça de Queiroz (2000), A Igreja românica de S. Pedro de Rates: Guia para visitantes (2000), Eça de Queiroz, marcos bibliográficos e literários (1845-1900), catálogo da exposição do Instituto Camões (2000), Ilustrações e ilustradores na obra de Eça de Queiroz (2001), O mistério da estrada de Ponte de Lima: António Feijó, Eça de Queiroz (2001), Sobre Eça de Queiroz (2002), Sete biografias de Eça de Queiroz (2004), Dicionário de citações de Eça de Queiroz (2005) e Eça de Queiros, postais ilustrados (2006).
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EÇA DE QUEIROZ: FOTOBIOGRAFIA: VIDA E OBRA, de A. Campos Matos. São Paulo: Leya, 434 págs., R$ 159,90, 2010.
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Uma poesia atávica (Henrique Marques Samyn)


http://marques-samyn.blogspot.com/




O adjetivo presente no título deste texto não foi escolhido por acaso. Afirmar que Daniel Mazza é o autor de uma poesia atávica não significa dizer que ele seja passadista, tradicionalista, reacionário, alguém meramente dedicado a revisitar nostalgicamente formas e temas antigos; de fato, o que quero destacar por meio dessa adjetivação é o fato de reaparecerem, na poética de Mazza, elementos característicos de uma certa tradição poética − brasileira e universal − que são habilmente revivescidos no interior de um discurso literário. Num momento em que certa vertente da crítica insiste em exigir da poesia a superficialidade e o descompromisso (recaindo, desse modo, na viciosa tentativa de perpetuar modas poéticas), Daniel Mazza ousa escrever poemas de uma seriedade impressionante, nos quais é patente um domínio técnico raríssimo nos autores mais novos − qualidades que se fazem presentes de forma muito nítida em seu livro mais recente, A cruz e a forca (Book editora, 2007).

Tendo estreado com Fim de tarde (Funpec, 2004) − livro que não conheço, mas que já indicia seu talento, a julgar pelos poemas disponíveis na internet −, Mazza publicou seu livro de estreia aos 29 anos; portanto, doze anos após começar a escrever, segundo a biografia disponível em seu sítio. Por que isso é relevante? Porque Mazza não teve a pressa de publicar tão comum nos tempos atuais, quando a impressão de livros em pequenas tiragens é menos custosa do que há alguns anos; porque − deliberadamente ou não − , ele soube permitir que sua poética amadurecesse, até emergir com uma obra consistente. Ainda que Fim de tarde seja um livro considerado irregular pelo próprio Mazza e por um crítico competentíssimo como Marcos Pasche, ele indubitavelmente tem o que é necessário num livro de estreia: a promessa da grande poesia.

Passemos à leitura de A cruz e a forca. O livro divide-se em três partes: "A morte", "A culpa" e "A cruz e a forca". Os títulos dessas seções remetem a um componente fundamental de todo o temário da obra: o imaginário cristão. Desse modo, a tematização da morte se aproxima menos do tempus fugit do que do sic transit gloria mundi; não ocasionalmente, "A culpa" traz um poema sobre as três negações de Pedro; e o último dístico de "A cruz e a forca", poema que encerra (e, em certa medida, sintetiza a proposta do livro), afirma: "É o verbo calado na forca, / É o silêncio altissonante na cruz". Não é preciso ser cristão − quem escreve este texto não o é − para reconhecer a qualidade dos poemas de Mazza, que em momento algum resvala no proselitismo; pelo contrário: os elementos da tradição cristã não são, para ele, um fim em si mesmo, mas motivos que conduzem à tematização universalizante. Poemas como "Simonia" ou "Duas preces" revisitam topoi presentes na lírica médio-latina, logrando efetivar a atualização necessária.

No prefácio do livro, Anderson Braga Horta menciona duas influências, de fato perceptíveis nos poemas de A cruz e a forca: João Cabral de Melo Neto e Augusto dos Anjos. É necessário, contudo, observar que esses influxos não se dão verticalmente, mas horizontalmente − ou seja: Mazza é um poeta maduro o suficiente para dialogar com essas referências, sem deixar de impor a singularidade da sua dicção. A presença cabralina é mais nítida, a meu ver, pelo tom analítico e dissertativo de certos poemas, como "A bala viva" e o já citado "Duas preces"; já o diálogo com Augusto dos Anjos se faz presente pela figuração horrífica da matéria, sobretudo a orgânica, não raro a partir de referências moralizantes − algo que transparece em textos como "Litania do corpo" e "O repasto da morte". Nisso não se veja uma deficiência: esses diálogos são necessários − sobretudo num caso como o de Mazza, em que a sua mundividência avassala os traços de influência: seus temas não são os de Cabral; a tensão entre a matéria e o infinito que mobiliza o lirismo de Augusto dos Anjos é superada em favor do segundo, o que evoca um misticismo que pode ser tacitamente aproximado de Alphonsus de Guimaraens. Daniel Mazza já começa, enfim, a pavimentar o seu caminho pelas terras da poesia; e, considerando-se o rigor com que se dedica a segui-lo, pode ainda percorrer vastas paragens.

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