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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Uma poesia atávica (Henrique Marques Samyn)


http://marques-samyn.blogspot.com/




O adjetivo presente no título deste texto não foi escolhido por acaso. Afirmar que Daniel Mazza é o autor de uma poesia atávica não significa dizer que ele seja passadista, tradicionalista, reacionário, alguém meramente dedicado a revisitar nostalgicamente formas e temas antigos; de fato, o que quero destacar por meio dessa adjetivação é o fato de reaparecerem, na poética de Mazza, elementos característicos de uma certa tradição poética − brasileira e universal − que são habilmente revivescidos no interior de um discurso literário. Num momento em que certa vertente da crítica insiste em exigir da poesia a superficialidade e o descompromisso (recaindo, desse modo, na viciosa tentativa de perpetuar modas poéticas), Daniel Mazza ousa escrever poemas de uma seriedade impressionante, nos quais é patente um domínio técnico raríssimo nos autores mais novos − qualidades que se fazem presentes de forma muito nítida em seu livro mais recente, A cruz e a forca (Book editora, 2007).

Tendo estreado com Fim de tarde (Funpec, 2004) − livro que não conheço, mas que já indicia seu talento, a julgar pelos poemas disponíveis na internet −, Mazza publicou seu livro de estreia aos 29 anos; portanto, doze anos após começar a escrever, segundo a biografia disponível em seu sítio. Por que isso é relevante? Porque Mazza não teve a pressa de publicar tão comum nos tempos atuais, quando a impressão de livros em pequenas tiragens é menos custosa do que há alguns anos; porque − deliberadamente ou não − , ele soube permitir que sua poética amadurecesse, até emergir com uma obra consistente. Ainda que Fim de tarde seja um livro considerado irregular pelo próprio Mazza e por um crítico competentíssimo como Marcos Pasche, ele indubitavelmente tem o que é necessário num livro de estreia: a promessa da grande poesia.

Passemos à leitura de A cruz e a forca. O livro divide-se em três partes: "A morte", "A culpa" e "A cruz e a forca". Os títulos dessas seções remetem a um componente fundamental de todo o temário da obra: o imaginário cristão. Desse modo, a tematização da morte se aproxima menos do tempus fugit do que do sic transit gloria mundi; não ocasionalmente, "A culpa" traz um poema sobre as três negações de Pedro; e o último dístico de "A cruz e a forca", poema que encerra (e, em certa medida, sintetiza a proposta do livro), afirma: "É o verbo calado na forca, / É o silêncio altissonante na cruz". Não é preciso ser cristão − quem escreve este texto não o é − para reconhecer a qualidade dos poemas de Mazza, que em momento algum resvala no proselitismo; pelo contrário: os elementos da tradição cristã não são, para ele, um fim em si mesmo, mas motivos que conduzem à tematização universalizante. Poemas como "Simonia" ou "Duas preces" revisitam topoi presentes na lírica médio-latina, logrando efetivar a atualização necessária.

No prefácio do livro, Anderson Braga Horta menciona duas influências, de fato perceptíveis nos poemas de A cruz e a forca: João Cabral de Melo Neto e Augusto dos Anjos. É necessário, contudo, observar que esses influxos não se dão verticalmente, mas horizontalmente − ou seja: Mazza é um poeta maduro o suficiente para dialogar com essas referências, sem deixar de impor a singularidade da sua dicção. A presença cabralina é mais nítida, a meu ver, pelo tom analítico e dissertativo de certos poemas, como "A bala viva" e o já citado "Duas preces"; já o diálogo com Augusto dos Anjos se faz presente pela figuração horrífica da matéria, sobretudo a orgânica, não raro a partir de referências moralizantes − algo que transparece em textos como "Litania do corpo" e "O repasto da morte". Nisso não se veja uma deficiência: esses diálogos são necessários − sobretudo num caso como o de Mazza, em que a sua mundividência avassala os traços de influência: seus temas não são os de Cabral; a tensão entre a matéria e o infinito que mobiliza o lirismo de Augusto dos Anjos é superada em favor do segundo, o que evoca um misticismo que pode ser tacitamente aproximado de Alphonsus de Guimaraens. Daniel Mazza já começa, enfim, a pavimentar o seu caminho pelas terras da poesia; e, considerando-se o rigor com que se dedica a segui-lo, pode ainda percorrer vastas paragens.

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Últimos poemas (Carmen Silvia Presotto)

Como se fossem a Última Crônica de Sabino

“Dobrais as esquinas comigo...”
Ferreira Gullar


Tomava o costumeiro café do Bar do João, quando abro um velho jornal e reencontro a Última Crônica. Coincidência!? Bons presságios?! Pode ser. Mas, em meu tempo, talvez sejam palavras plenas, sussurros da mão, linhas que me levam, entre tantas escritas, justo à favorita.

Logo, minha lúcida cabeça remexe-se dos ossos. Cru, desabitado da pele de aposentado, visto o Dia sem pijamas para saltar fronteiras. Por cada botão, amplio asas. Troco botões por cores invisíveis, àquelas inaudíveis que passeiam pelos inesgotáveis bosques e chego a outros universos que nunca me veem.

Sim! Descascar letras é algo ridículo. A menos que o eu – colador de palavras – seja um velho reciclado ou uma criança ou alguém atemporal, fora de secção, cruzando palavras com estações, feito um trabalhador...

Aí, caros amigos, chegando ao bonde, onde tudo ainda é desejo. Aí, sou este calendário, diante a tantos googlegismos, pedindo dízimos. Ou se preferirem, escutem alguns, de onde serei ninguém.

Assim – vagão vazio – sou este desalinho descamisado de trilhos. Mas para tanto, caros senhores, não me subestimem, apenas escutem: para nada não se necessita tudo.

Dito isso, bastaria escrever. Sem moralismos, habitar-me da mortalha traçada pelo papel de outros e, simplesmente ler... Para tanto, embriago-me de coragem – tintas – que rabiscarão os pincéis com que me maquiarei.

Feito isso: personagem! Rasgo diferentes ângulos e por cada fresta, diante lentes, ancoro meu narrador câmara e abuso das lentes. Sobrepondo olhares, caminharei sobre-fatos. Deles estalarei minhas carnes. Tingindo momentos, seguirei uma estrada. Além dos álbuns de fotografias de quem se diz história, serei retrato e do olhar de cataratas serei um decurso, rio desaguando entre relatos.

Assim, deslizo tipo copidesque sem esconderijos. Portanto, caros leitores, incluam-se, juntos, dentro de outras leituras, poderemos reinventar qualquer humano. Não, pensem o contrário... Se poderia omitir tais detalhes, mas apenas exalo o óbvio entre palavras para caminhar no pedestal que sempre vão dar em milhões de frases já transplantadas em mim.

Seria diferente para algum de vocês? Mas, será que isso importa!?... Pronto o cenário, vampira de letras, persigo meu querido escritor, Fernando Sabino, vivo – ele – viveremos os dois. Desfolhando suas veias, imagino as cenas que agora atravessam o tempo para chegar aos olhos do Edu – garçom do lugar – que há anos trabalha nesse botequim. Posso me enganar, mas, ao me aproximar da crônica criatura, escuto o que, agora, conto a vocês.

Entre dentes, Edu murmura que tava de saída porque o bar estava às moscas e Seu João que fazia o caixa ao famoso freguês que sempre pendurava a conta já juntava seus papéis quando o bando estranho entrou. Às vezes, ele sussurra que odeia esses bares de moda e debates e mais ainda a calma louca de seu patrão...

Olha só! Olho e percebo ao que ele chamara de malditos que mudam o ar do ambiente. O caixa terá de esperar porque o jornalista escritor – bem atento – sentou de novo. Na certa, cheirou um furo na curiosa família e eu volto para meu avental e arrasto meus malditos calos até a mesa dos três negros – pai, mãe, filhinha – com um apetite de lobo-mau.

Lobo-mau, Edu?!

Sim, droga, drogas! Olha... Tenho vontade de comê-los vivos porque entram aqui e liquidam com o meu programa e se contar na Vila ninguém acreditará e pior ficará a Beatriz que é uma fera e não tenho como avisar a ela e sei que isso me pendurará por mais uma semana.

Sim, diabo, diabos! Olha... Logo quando estava avançando o sinal e justo hoje que há jogo e cevas e somente Deus sabe como esperei e falam tanto do tal Viagra e basta um homem conseguir uma mulher para ploft... perder tudo.

Olha! Pela demora deles é melhor eu oferecer rápido o serviço, pois pobre é fogo e lá estão eles contando suas migalhas. Que cena! Será que notaram que não é hoje o dia do pendura, pois eu não me engano... Só podia ser assim, uma fatia do bolo amarelo forte e abatumado e barato o suficiente para ser acompanhado de coca-cola e a coitada da menininha ainda ri – pudera fome é fome – devem ter pegado toda a grana do mês para comemorar essa merda de aniversário.

Desvio os olhos de Edu, miro a todos os lados, escuto o silêncio que habita o bar. Por instantes, em segundos seu olhar me captura, parece que ele percebe que, além dele estarmos próximos, também sou muito agitado. Assim, nossas angústias se debatem ao momento. Agora é ele quem me persegue para que o siga, olhando por seus resmungos, porque enquanto levava os copos me distraíra com a mãe que separava três velas dentre as bugigangas da sacola.

E o pai... psiu... sopra-me Edu...

Olha! É um coitado que nem levanta os olhos e cá para nós como não ficar envergonhado com tamanha bobagem de mulheres que desejam copiar as novelas e fazem cenas mexicanas para que todos tenhamos pena delas, mas eu também sou empregado e tenho pau e tesão e tinha a Bea que a essa hora deve ter catado outro negrão...

Olha, comigo não! Não tenho pena não! Eles querem me humilhar porque sentem que nunca tive um bolo nem velinha nem mãe nem pai e que só entro em restaurantes para servir copos e pratos e sorrir para as poucas gorjetas.

Que racistas! Merda de família racista! Olha lá!

Agora sou eu quem o segue, acompanhando seus passos vou pensando: vê se pode! A mãe limpando as velas para colocar na sacola e a filhinha ainda sorri e o pai continua quieto, cabeça baixa, triste, calculando a conta.

Mas, novamente, os grunhidos de Edu me tiram da contemplação... Olha! Um dia de trabalho pela humilhação. Bem feito! No próximo, pensarão melhor. Agora, o pai sorri para o jornalista que aqueceu a caneta de tanto escrever. E durante toda minha tortura somente Seu João ficou ligado com seu costumeiro ar desligado de dono de botequim aquele jeito dos que fecham as contas e o bar para subirem para suas marias. Fácil, muito fácil! Enquanto eu perco uma noitada servindo negros fingidos de postiça família.

Olha! Finalmente pediram conta.

Vejo Edu crescer. Um ar de satisfação, além de ampliar seu tamanho, também aumenta sua voz ao dirigir-se à mesa... Ufa, grita! Quanto a mim, piscando sussurra que chegara sua vez, dizendo: Eis a minha vingança, chego a escutar os ohs, negros malditos!

Coço a cabeça e falo a ele, olha o que vais fazer, Edu, hein?

Sim, não te preocupes. Agora, eles verão o quanto custa entrar pela porta da frente e sentar num bar para frescuras sentimentais.

Ao retornar, comenta Ué! Coça a orelha, indagativo, falando que o homem nem gaguejara. Pagou e ainda deixou uma gorda gorjeta. Esnobes! Racistas! Bem, ainda posso pegar um táxi e talvez a Bea...

Já não o escuto, quando ele acena a seu dono, abanando também ao jornalista, que, finalmente, apanha a surrada pasta, encaminhando-se à porta.

Escuto, através das duas venezianas, as pisadas opostas na calçada. Chego a pensar, cada um com seu destino, apanho o jornal, saio e, ao escutar o baixar de grades do bar, chega o ônibus.

Na viagem, lembro de que Edu buscará sua Bea, enquanto isso imagino que o jornalista deva estar chegando à Redação... E como o trajeto é longo, espicho o olhar para escutá-lo: Pessoal! Hoje presenciei uma cena comovente. Saía do bar do João, quando uma família de negros me deteve. Sensacional!!! Estavam arrumados para uma festa com suas roupas domingueiras. Sentaram-se quietos, porém a negrinha, filhinha do casal e aniversariante, era a pura felicidade, retrato visível atravessada por sorrisos. Ao contrário do Edu. Lembram, dele? Ele ficou uma fera, abandonou o costumeiro bom humor, seu habitual cartão de visita e, arrastando-se à mesa dos clientes, quase lhes joga o cardápio. Não identifiquei bem a causa de tamanho aborrecimento. No início, olhou muito para o relógio, parecendo querer atrasá-lo para não perder um encontro. Depois, percebi. Diminuía-se ao servir pessoas da mesma cor. Coisas de negros! Sentem-se humilhados, como se nós brancos fôssemos melhores do que eles. E o que é cor? Claro, que nada, pessoal! Também acho apenas uma fachada. Aliás, João continuou impassível... Entocado no balcão, manteve-se indiferente. Nem a inesperada família alterou o conhecido ar de quem se sabe dono de um lugar. Mas pessoal! Quando vi o pedido, não contive as lágrimas. Inesquecível!!! Imaginem uma fatia do amarelo e dormido bolo, acompanhado de uma coca-cola. Uma! Triste, piegas mesmo. Porém, pior foi a cena das três velinhas usadas para a celebração, vocês também não conteriam algumas lágrimas. A negrinha sorriu todo tempo. A mãe era puro orgulho do precioso momento e o pai... Bem, ele se manteve sério, cabisbaixo, talvez preocupado com a conta. Chegamos a cruzar olhares, tentei demonstrar solidariedade ao que ele fugia com um doce sorriso. Isso me cortou o coração. Afinal, o que não se faz em nome do amor? Pai é pai e orgulhou-me seu gesto. Tentei. Pena ele ter fugido, pois já estava disposto a ajudar nas despesas... Pessoal! Adoro esses botequins alternativos, mais gente deveria apreciar e frequentar esses pitorescos cenários, para mudar o compasso de nossa situação sociológica. Imaginem! Uma bela e amorosa família de negros comemorando três aninhos de sua filhinha. Lindo e sensível momento! O Darci adoraria estar ali comigo. Bem, finalmente, veio a conta. O Edu chegou curioso, mas, pela primeira vez, contente. Aliás, contente era pouco, felicíssimo. Depois disso, eles se retiram como chegaram, quietos. Ah! Quase esqueço... Antes a mãe limpara as velinhas, guardando-as numa bolsa de plástico colorido. Talvez fosse vinil, pouco importa! Foi então que percebi o Edu de olhos esbugalhados recontando a gorjeta. Ao saírem os convidados, encaminhamo-nos à porta. Segui para cá e ele tomou outro rumo. Ouvimos quando o João cerrou a cortina do bar. Pena que, além de mim, apenas umas mãos folhando um velho jornal presenciara a cena.

Olho pela janela, ainda faltam alguns minutos; então, caros senhores, prossigo... Depois de fechar o bar, penso que João tenha subido as escadas para contar as novidades a Maria. Claro que não foi tão eufórico quanto o jornalista, mas escuto quando ele diz: Maria! Atrasei porque fechava o caixa, o Edu já se vestia para sair, o senhor do jornal nem se conta e o Fernando terminando a derradeira caipirinha apanhava suas anotações, quando entra uma família de negros no bar: pai, mãe e filhinha. Mudamos todos! Os que saíam ficaram e eu deixei o caixa para depois, apenas acompanhei os movimentos à distância. Indiferente como sempre faço.

Bem chegamos! Desço do ônibus e digamos que João tenha dito a Maria que o sono batera, assim viro de lado, apaga o abajur e amanhã conto-lhes o resto do acontecido...

No dia seguinte, ao tirar o pijama, lembro da história com meu café, sigo escutando aquele bar onde Maria, despedindo-se de João, grita um bom dia, ele responde, descerrando a grade de ferro, enquanto aguarda o garçom. Logo Edu chega e João vai até a banca apanhar o jornal.

Ao retornar, vê que Edu já servira os primeiros cafés. Tudo normal! Abre o matutino e, sutilmente, chama ao garçom: Hei, Edu, psiu! Este se aproxima e felizes leem a notícia do Dia, apontada por Fernando num cantinho do jornal: “Uma cena comovente no Bar do João, espaço alternativo e pitoresco, onde a vida sempre é surpreendida por ares de mudanças. Lá, ontem, uma família de negros demonstrou muito amor a sua filhinha, dando-lhe como presente de aniversário um momento inesquecível, surpreendentemente feliz... e barato!”

Riam do comentário, falando que isso lhes daria créditos... Ah! Esses escritores... São os eternos mutantes do mundo, sempre têm a ilusão... Ih, patrão! Diz Edu folhando a página. Emudecem com a foto que veem na coluna social. Nela, estampava-se a Negra Família e junto uma nota esclarecedora: “A Primeira Dama recebia o Primeiro Ministro de Luar para o Congresso que analisaria e estudaria soluções às complexas questões de racismo em prol de um Novo Terceiro Milênio.”

Meu Deus! Falamos juntos. Veem que agora também me incluo? Sim, entrecolando todas as linhas podemos sentir que Edu deve seguir passeando por seus porquês, enquanto João se debate pelo péssimo negócio da noite anterior e feito um grilo falante sopro a todos: Bem feito! Era um Primeiro Ministro e nem foto tiraram para o quadro dos famosos. E agora Edu, João e Fernando, hein? E o velho bolo amarelo e abatumado? E as velinhas? Quem diria que eram ricos e célebres?

Apenas Maria me foge de explicações. Porque está claro que o dono do lugar deva estar catando olhos seguros, firmes para saber observar melhor as gordas carteiras. Droga deve dizer João, pois sente que deveria confiar mais no seu faro. É! Agora não adianta lembrar que nela havia cheques e cartões...

Bem, terão que me aguardar um pouco. Vocês leitores sabem como é o pensamento, ele voa, mas minhas pernas precisam de bengalas. Portanto, depois do café seguirei para lá, mas antes desejo que João me escute e perceba que sua única saída é ligar para o Fernando. Ele é a pessoa certa para desfazer tais enganos, basta combinar com Maria para os receberem feito família e com todas as honras da casa celebrar o jantar das acareações... Sinto que João liga para o jornal, também eu faria isso. E têm horas na vida que nos pede a tática de um técnico, pois sabemos as melhores jogadas, mas... Escutem! O Fernando atende ao telefone e, como sempre, já segue dizendo que nem precisam agradecer, que o prazer é todo dele, já que a nota publicada fora uma honra porque não é sempre que fatos como... Não aguentando mais, notem que João o interrompe, gritando para que ele vire a página.

Sintam o silêncio na linha e os gritos ao telefone. Todos no bar despertam, diante de tanta raiva. Praguejando, João escuta um fio de voz retornando do aparelho, palavras desculpas pela imensurável gafe e ironizando tamanha ingenuidade pelo insólito fato.

Enquanto isso termina meu café. Agora já os escuto mais calmos. Deram-se conta das contas, que estiveram diante de personalidades internacionais e os trataram como simples brasileiros. O jornalista termina implorando para que o dono do Bar não divulgasse a sua notinha sobre o caso, pois teme que lhe peçam explicações... Enquanto o garçom fala ao patrão que todo o acontecido parecia coisa de filme, não é?

Pois é, Edu! Trataram um Primeiro Ministro em família como normais, esquecendo-se de que eles, quando comuns, não se sentam em restaurantes com tamanha excentricidade. Tu sabes, mas João, como dono do local, deveria ter notado... Não há de ser nada. Logo, o Fernando conseguirá remendar os fatos, um jantar das acareações com Maria e sabemos que por aqui há pouca memória mesmo, nem mencionaram a mim. No entanto, logo, logo uma nota no jornal salvará suas Pátrias. É! Maria tem todo direito de estar braba, perdera a grande chance de parar de suspirar...

Mas minha gente! Olhem só, tamanha confusão, quando uma família apenas buscava momentos de normalidade. Entraram naquele bar, após muito trabalho para escolher um espaço vazio, onde pudessem ter uma comemoração particular. E, devido gestos e atitudes do garçom, sentem que não são bem-vindos.

No entanto, não havia tempo para bobagens e o exposto bolo amarelo e abatumado finaliza a escolha. Ao vê-lo, claro que pressentem que tudo daria certo. Então, entram no bar. A princípio, ressentem-se do homem que escreve tanto. O pai pensara ser reconhecido, por isso a atenta mãe o animava lembrando-lhe da aniversariante, motivo pelo qual valia a pena correr o risco de serem apanhados pelos flashes. Eles não poderiam deixar essa comemoração para outro dia, assim rezava suas tradições. A mãe, como boa africana, apanha as velas (que foram suas e de outras da família e que no futuro passará à filha, que passará às netas...), conforme descreve a lenda, apanha-as com cuidado, pois se alguma se partir ou quebrar trará azar ao ano comemorado. Então, todo o zelo é pouco...

Esperem que tomo outro café... Bem como dizia, o amarelo do bolo na vitrine os atrai. Lembra o milho, alimento da terra, e o sol, alimento do ar, que emitem energias positivas a todos e finalmente coca, porque no Brasil não há o chá da amarga Cola, planta nativa, verdadeiro depurativo sanguíneo dos maus resíduos que serão eliminados pela urina, equilibrando suas antigas quânticas terapias.

E cá para nós, leitores: fazer tudo isso perante políticos, sociólogos, pessoas da corte, pode não ser bem aceito e estragar seus discursos no país. Lembram que eles vieram para debater preconceitos raciais e não para explicar o folclore de um povo? Daí o Bar do João, as velas, a menina sorridente, a mãe zelosa e o pai, preocupadamente, cabisbaixo que, ao encontrar os olhos do escritor, sorri furtivo, pois percebe que não fora reconhecido.

E o tanto contar de notas, explico-lhes, foi por questão cambial. Além dos 50 reais trocados no aeroporto para alguma emergência, somente possuíam dólares e cartões de crédito. Gastaram 5 no bar, guardaram 6 para o táxi e deixaram o resto dos reais para o pobre, angustiado e infeliz negro. Homem tão serviçal, que poderia estar perdendo alguma festa para que eles comemorassem um tradicional aniversário de família.

É óbvio que o meu Fernando, depois desse episódio não escreveu mais crônicas. Apresentou-se ao Chefe de Estado, conversaram, voltaram ao Bar de João, registraram o fato em fotos e juntos seguiram para Luar, onde escreve romances tão puros como se fossem seu Último Poema.

Hoje, ele nem precisa rabiscar em outras linhas, parece que, quando percebeu que o sonho de toda a infância amadurece na velhice, reencontrou seu coração...

Claro que idade é algo sério, mais ainda quando com ela ainda se brinca. Do contrário, deveriam ser cantados choros e nunca parabéns nos aniversários. No entanto, caros amigos, dobrando amarelados jornais, largo a bengala e transparente prossigo a mão da vida...

Rio de Janiero - 2011
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