Começo de madrugada. Cachorros ladram. Um burburinho chega da vizinhança. Agora um vento frio entra pela clarabóia. De quando em vez um galo canta, e espera a resposta dos outros. Um soluço corta o silêncio na casa ao lado: alguém chora um antigo amor? Um pai lamenta o destino da filha? Ao longe uma sirene, bem mais distante um sino toca. Seria já manhã? Ou todos os ruídos da noite confluíam para aquele quarto simples de subúrbio: todos os lamentos perdidos, súplicas vãs, soluços de arrependimento ecoavam pelas paredes, farfalhavam entre as folhas da acácia, resvalavam nas frestas da persiana — um milhão de minutos pingava no relógio da sala: os rostos dos familiares mortos ganhavam uma nitidez surpreendente. Outro galo confirmava a madrugada, a mesma madrugada de outras épocas, como aquela em que amarraram o bêbado Napoleão no centro da praça — merecido castigo por seu misterioso crime — quando se fecharam todas as janelas: menos uma, logo aquela... a culpada de tudo. Um grilo agora eternizava a madrugada, fazendo com que a manhã fosse uma esperança perdida, um sonho que nunca se realizaria.
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terça-feira, 5 de abril de 2011
segunda-feira, 4 de abril de 2011
Meus cães, minhas diabinhas (Nilto Maciel)
Acordei tarde, num apetite danado. Passei a noite diante da televisão, a ver mulatas na Sapucaí. Fui à cozinha, fucei a geladeira, voltei à copa. Imaginei mordidas numa pera exposta na pequena fruteira sobre a mesa. Não, melhor me conter e aguardar o bife acebolado e quente do restaurante. Para enganar a fome, rasguei o envelope encontrado na caixinha do correio. Espantei-me: uma revista de capa colorida e meu nome em grandes letras, ao lado de um Peter, de um Otto, de uma Annette. Quase não acreditei no que via. Como fora meu nome parar na parte exterior daquela publicação germânica? Sim, o magazine vinha da Alemanha: Welt der Buchstaben. Embasbacado, ouvi o grito da sirene. Quem seria? Corri ao portão, meti a cara na folha metálica e me assustei: três diabinhas a pular na calçada. Só de uma lembrei-me: Carla Pimentel, a Carlinha da semana passada. Abri o portão, com pressa de celerado. As três saltaram ao meu pescoço e quase me levaram ao chão. Não façam isso! Olhem o povo! Vestiam-se como diabretes, rabos empinados e a balouçar, rostos pintados, toquinhas de variadas cores, saiotes curtos. É carnaval, poeta, é carnaval! Vamos dançar. E se balançavam na direção da porta, arrastando-me feito boneco de Olinda. Por que vieram sem me avisar? Precisa avisar? Quem são suas amigas? Esta é Fabíola, mas pode chamar de Fabi. Abracei-a, beijei-a, de olho na terceira. E você quem é? Eu sou Gabriela, a Gabi. Convidei-as a se meterem na casa: Introibo ad altare Niltei. Carla se apimentou mais: Diabo é isso, meu?
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