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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Nilto Maciel revisitado* (Batista de Lima)




Sânzio de Azevedo me telefonou à tarde de 30 de abril último para anunciar a morte de Nilto Maciel. Já não bastava a aflição da Declaração do Imposto de Renda, no seu último dia. Havia prenúncio desde cedo, com Fortaleza engasgada de carros que não se moviam. Inacreditável tão fatídica notícia sobre alguém tão presente na nossa vida literária, sobre um líder entre gerações de escritores de 1970 até hoje. Talvez só parelha com Rogaciano Leite Filho, que, mesmo assim, teve uma morte mais ou menos convivida. Nilto sempre foi surpreendente, em Fortaleza ou em Brasília, em que residiu por três décadas, estava rodeado por escritores, falando pouco e dizendo muito.

Nilto Fernando Maciel nasceu em 30 de janeiro de 1945 em Baturité, cidade em que fez seus primeiros estudos. Ainda adolescente já estava em Fortaleza para estudos mais avançados que o levariam, com o tempo, a ingressar na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Como advogado candango chegou a Brasília, enquanto aquela cidade ainda adolescia, e por lá ficou trabalhando no Tribunal de Justiça até quando aposentou-se e retornou para Fortaleza. Tanto na Capital Federal quanto na Capital Cearense, engajou-se no mundo da Literatura como notável narrador e também como organizador de grupos literários e periódicos de vasta repercussão nacional.

Fui apresentado a Nilto Maciel em 1971, pelo seu irmão Ednardo, que como eu, fazia Letras, curtia literatura e frequentava o Restaurante Universitário. Ednardo faleceu em um acidente automobilístico e a amizade com Nilto ampliou-se quando ele, ao lado de Jackson Sampaio, Carlos Emílio Correia Lima e Manoel Raposo fundaram a revista O Saco de que éramos curtidores assíduos. Sua ida para Brasília parecia que ia quebrar esse vínculo afetivo. Acontece que em 1979, com o surgimento do Siriará, grupo literário com mais de duas dezenas de escritores, estávamos de novo batalhando juntos pela Literatura Cearense.

A distância entre Brasília e Fortaleza não impediu de Nilto atuar no novo grupo literário, principalmente lá fora, na divulgação do que fazíamos aqui. Qualquer feriado, período de férias e final de ano, estava o companheiro conosco em reuniões literárias e noitadas no Estoril. Era um boêmio de poucas palavras e muitos goles, no entanto, sempre comedido, parceiro e fraterno. Qualquer um de nós quando íamos a Brasília, era festa na certa. O Bar Macambira era local de reunião de confrarias literárias. Ali se reuniam poetas, políticos, leitores e boêmios em papos e doses que varavam a noite.

Ao se aposentar, Nilto Maciel retornou em definitivo para Fortaleza e dedicou-se exclusivamente à Literatura. Aqui, nessa nova fase, transformou-se em verdadeiro guru das novas gerações de escritores, sem esquecer as antigas. Circulava com desenvoltura entre remanescentes do Grupo Clã (década de 1940), Grupo dos Concretos (década de 1950), Grupo SIN (década de 1960), Grupo Siriará (década de 1970) e estava sempre cercado de jovens escritores que se tornariam revelações de nossa Literatura como Pedro Salgueiro, Dimas Carvalho, Cândido Rolim, Hermínia Lima, Aíla Sampaio, Tércia Montenegro, Raymundo Netto e muitos outros.

Aliás, foi Raymundo Neto quem primeiro tomou conhecimento de sua morte. Afinal, há dias ele não atendia telefonemas e estava descumprindo o compromisso literário com a UVA (Universidade Vale do Acaraú), em Sobral, em evento sobre a Literatura Fantástica no Ceará, em que seria um dos palestrantes. Não seria a primeira vez que Nilto Maciel falaria para estudantes de Letras em Sobral. Lá estivemos, tempos atrás, com o mesmo objetivo e foi visível o sucesso de sua fala. Também estivemos em missão similar em Aracati e em várias oportunidades em Fortaleza.

Nilto Maciel é autor de doze livros de contos, nove romances, três coletâneas de ensaios e mais três livros de crônicas memorialísticas. Descendente da estirpe da família Maciel, de Quixeramobim, um de seus ancestrais é Antônio Conselheiro, líder do episódio épico de Canudos. Talvez esse DNA o tenha tornado um escritor cultivador do fantástico, conhecido nacionalmente. Seus livros trazem o selo de editoras locais, de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Há deles traduzidos para outras línguas e pelo menos um transformado em filme. Sua mais recente publicação foi "Sôbolas manhãs" que me foi enviado 20 dias antes de sua morte.

De 1992 a 2008 Nilto Maciel editou e distribuiu "Literatura: Revista do Escritor Brasileiro", em mais de trinta números. Dada a nossa amizade, sempre publicava meus textos, a ponto de me orgulhar de estar presente em todas as edições. Sempre o correio me trazia dez exemplares de cada número. É por isso que sua partida inesperada traz um vazio imenso para nossas letras. Deixa órfã uma geração de jovens escritores que o tinham como referência e põe em alerta os da sua geração que o admiravam tanto. É que essa vida é traiçoeira e que esse seu mais recente livro em vez de "Sôbolas manhãs" se afigura aos nossos olhos como "Sôbolas tardes". Nossa geração Siriará já ultrapassou o meio dia.
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* Originalmente publicada no Caderno 3 do Diário do Nordeste. Clique "aqui".
- Sobre Batista de Lima, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Batista_de_Lima.

Quem terminará as tarefas do morto?* (Pedro Salgueiro)



Quem completará as inadiáveis tarefas do morto? Quem acabará de arrumar sua penúltima mala, na qual só faltava uma camisa engomada, já que a calça de brim jazia bem dobrada ao lado da pasta com o fecho aberto até quase a metade (por onde dali a pouco ele enfiaria o discurso de abertura de um congresso macabro).

Quem terminará de pôr sua derradeira postagem na página que era seu barco, sua âncora, sua tábua de salvação de náufrago sem remissão? Qual dos amigos postará um primeiro e o último comentário póstumo, com a bendita insulina do elogio fácil que tanto azeitava o parco sangue do morto?

Quem de nós, amigos de sempre e os ausentes, aparará pela última vez as unhas tortas do morto; qual deles se sentará desconfortável no sofá puído, sobre a velha toalha com emblema gasto do glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta tristeza vinha trazendo ultimamente ao finado?

Quem completará o último romance do corpo magro e putrefato que jaz inocentemente estendido no pequeno corredor entre o banheiro, o quarto de dormir e a sala?

Quem ouvirá de sua boca minúscula que aquele seria seu Ulisses, seu canto de cisne, sua última e mais perigosa jogada: depois da qual não se sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente escreveu antes?

Quem da famigerada corja dos companheiros de copos, de colegas de geração, de novos e velhos parceiros de penas, escutará suas derradeiras idiossincrasias, seus restantes insultos velados, suas últimas indiscrições escritas?

Quais dos ouvidos singelos, limpos e sempre disponíveis, escutarão suas reles blasfêmias de ateu reimoso, seus vãos arrependimentos, suas dolorosas lembranças de infância, por onde desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus pais, tios, irmãos, todos mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos pedregosos caminhos da vida?

Quem dentre os muitos companheiros de vida ecoará pelos ventos suas iras, sonhos, amores, dissabores, langores, sussurros e preces?

Quem raspará a rala barba diária do morto, quem cofiará com seu modo único o velho bigode aparado tão baixo, discretamente escondendo o riso cínico, a impune maledicência, os dentes finos trincados de dor?

Quem dentre os já mortos o vai auxiliar no profundo estudo da geologia dos campos santos? Quais dos Josés, Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão a aparar as raízes desse imenso “mato baixo” que somos no fundo todos nós que por aqui restamos?

Quem editará seus livros esquecidos, os quase concluídos e – principalmente – os que ainda seriam escritos? Quem os postará nos correios para os tantos admiradores desse Brasil tão grande? Quem receberá, por sua vez, a enorme quantidade de livros que lhe enviarão todos os novíssimos poetas desse país gigante?

Quem vai restaurar os derradeiros filmes, fotos e lembranças de vida para mostrar no moderno projetor, que ele havia acabado de comprar e posto no quarto para presentear as quatro filhas quando elas aqui por ventura aportassem?

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Não! Não! Senhores! Um morto assim não deveria morrer tão cedo, pois ele ainda tinha diversas coisas a fazer, bastantes (e inadiáveis) tarefas para completar...

E muita, muita vida ainda por viver!

“Demorou dias a agonia de Ascânio Bustamante Coimbra. Vomitava versos, retorcia-se na cama, agitado, febril, voz sumida. E finalmente expirou, translúcido como a evidência, magro, quase ossos, e a pele manchada de letras.” (Nilto Maciel – do conto O translúcido Ascânio).
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* Crônica publicada no jornal O Povo, em 10/05/2014 - clique "aqui".