Quem terminará de pôr sua
derradeira postagem na página que era seu barco, sua âncora, sua tábua de
salvação de náufrago sem remissão? Qual dos amigos postará um primeiro e o
último comentário póstumo, com a bendita insulina do elogio fácil que tanto
azeitava o parco sangue do morto?
Quem de nós, amigos de sempre e os
ausentes, aparará pela última vez as unhas tortas do morto; qual deles se
sentará desconfortável no sofá puído, sobre a velha toalha com emblema gasto do
glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta tristeza vinha trazendo ultimamente ao
finado?
Quem completará o último romance do
corpo magro e putrefato que jaz inocentemente estendido no pequeno corredor
entre o banheiro, o quarto de dormir e a sala?
Quem ouvirá de sua boca minúscula
que aquele seria seu Ulisses, seu canto de cisne, sua última e mais perigosa
jogada: depois da qual não se sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente
escreveu antes?
Quem da famigerada corja dos companheiros
de copos, de colegas de geração, de novos e velhos parceiros de penas, escutará
suas derradeiras idiossincrasias, seus restantes insultos velados, suas últimas
indiscrições escritas?
Quais dos ouvidos singelos, limpos
e sempre disponíveis, escutarão suas reles blasfêmias de ateu reimoso, seus
vãos arrependimentos, suas dolorosas lembranças de infância, por onde
desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus pais, tios, irmãos, todos
mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos pedregosos caminhos da
vida?
Quem dentre os muitos companheiros
de vida ecoará pelos ventos suas iras, sonhos, amores, dissabores, langores,
sussurros e preces?
Quem raspará a rala barba diária do
morto, quem cofiará com seu modo único o velho bigode aparado tão baixo,
discretamente escondendo o riso cínico, a impune maledicência, os dentes finos
trincados de dor?
Quem dentre os já mortos o vai
auxiliar no profundo estudo da geologia dos campos santos? Quais dos Josés,
Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão a aparar as raízes desse imenso
“mato baixo” que somos no fundo todos nós que por aqui restamos?
Quem editará seus livros
esquecidos, os quase concluídos e – principalmente – os que ainda seriam
escritos? Quem os postará nos correios para os tantos admiradores desse Brasil
tão grande? Quem receberá, por sua vez, a enorme quantidade de livros que lhe
enviarão todos os novíssimos poetas desse país gigante?
Quem vai restaurar os derradeiros
filmes, fotos e lembranças de vida para mostrar no moderno projetor, que ele
havia acabado de comprar e posto no quarto para presentear as quatro filhas
quando elas aqui por ventura aportassem?
***
Não! Não! Senhores! Um morto assim
não deveria morrer tão cedo, pois ele ainda tinha diversas coisas a fazer,
bastantes (e inadiáveis) tarefas para completar...
E muita, muita vida ainda por
viver!
“Demorou dias a agonia de Ascânio
Bustamante Coimbra. Vomitava versos, retorcia-se na cama, agitado, febril, voz
sumida. E finalmente expirou, translúcido como a evidência, magro, quase ossos,
e a pele manchada de letras.” (Nilto Maciel – do conto O translúcido Ascânio).
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* Crônica publicada no jornal O Povo, em 10/05/2014 - clique "aqui".