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sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Francisco Carvalho: um poeta maior (Nilto Maciel)


Há quem coloque Francisco Carvalho ao lado dos poetas maiores da Língua Portuguesa. Em 1982 teve reconhecido o mérito de sua arte, ao ser premiado em 1º lugar na Bienal Nestlé de Literatura Brasileira o livro Quadrante Solar. Mesmo assim, Francisco Carvalho não se tornou um nome conhecido nacionalmente

Um dos mais importantes livros do poeta cearense é, sem dúvida, Barca dos Sentidos, editado em 1989 pela Universidade Federal do Ceará. Trata-se de livro portentoso, além de englobar mais de duzentos poemas, divididos em cinco livros.

Francisco Carvalho conhece profundamente todas as técnicas, regras da arte poética. E por ser conhecedor dela é que não hesita em ser moderno, sem deixar de abrir novos caminhos a partir das rotas abertas pelos grandes poetas. Isto é, não dá ouvidos àqueles que preconizam a morte do verso e, por conseqüência, dos diversos tipos de poemas tradicionalmente conhecidos, como o soneto. Aliás, há um livro dele composto só de sonetos – Rosa Geométrica.

Muitos dos poemas do poeta são intitulados balada, canção, cântico, elegia, madrigal, ode, soneto. Como “Canção Marinheira”, “Ode Itabirana” ou “Balada do Rio”. Nem por isso Francisco Carvalho é poeta atado a fórmulas ou formas já sedimentadas. Não, ele é também inovador ou, pelo menos, capaz de romper os limites impostos pela tradição poética. Como em soneto rimar “suspiros” com “arco-íris” (“Dádivas”) ou “barrocas” com “opas" (“Soneto de Sabará”).

Não vou citar aqui nenhum verso do livro. Seria difícil eleger este ou aquele, tantos são os mais belos.

Francisco Carvalho se distingue da maioria dos poetas brasileiros em atividade pelo uso de uma linguagem própria, sem deixar de ser tradicional, clássica. Não escreve para provar que é moderno ou para criar modas. Pois até passou ao largo dos movimentos do tipo Concretismo, Práxis, Processo. Nunca se deixou seduzir por modismos.

Apesar de ser poeta desobrigado de muletas, Francisco Carvalho não esconde influências de alguns poetas. E lhes presta homenagem, quer nas epígrafes, quer ao lhes dedicar poemas. E são muitos os homenageados. Como Fernando Pessoa. O poema “Interlúdio para Cefaléia” lembra muito o poeta lusitano. O mesmo se pode dizer de “Aspirina”. Há até um poema intitulado “Falsa imitação de Fernando Pessoa”, também no livro Rosa dos Eventos.

Embora dono de rico vocabulário, o poeta tem especial devotamento a algumas palavras-tema. Como morte/morto, casa, vento, chuva, cavalo/potro, boi/vaca, latifúndio, ancestral, diáspora. Talvez estes temas, só, assumam a maior parte de sua vasta obra.

Aqui e ali o poeta tange a lira burlesca ou contestatória. Nunca, no entanto, se faz vulgar ou panfletário. Pelo contrário, às vezes é hermético. Ele mesmo diz: “ninguém pode ser poeta sem ser, de vez em quando, hermético”.

Finalmente quero louvar a persistência de Francisco Carvalho em escrever poesia, quando tudo nos empurra para longe dela.

Termino entregue à tentação de citar uns versos seus: “Não seremos os últimos / a beber desta água e deste vinho”.
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A tragestória de Getúlio (Nilto Maciel)



O bigodão do gordo se mexeu, quando pedi a primeira dose. Ao beber, percebi que ele desconfiava de mim. Seus olhos pareciam lâminas a cortar meus lábios. No entanto, eu precisava beber. Engolir o veneno, o fel. Minhas vísceras, frágeis vertentes por onde desaguavam metais derretidos. Não quis cuspir ao pé do balcão e corri para a porta. Cuspi sobre o lombo do cachorro que lambia o traseiro de outro. Tentei acender, apressado, um cigarro. Uma baforada de ar frio entrou pelas narinas, pela garganta, pelas olhos. Voltei e pedi mais bebida. E mais, mais, mais.