Translate

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Savana (Ronaldo Monte)


Para Robinson, Paty, Marina e Cacau



Entre um cliente e outro, eu dava uma chegadinha no terraço e eles estavam todos lá. Esparramados nas poltronas ou espichados no sofá, estavam lá, na vagabundagem, enquanto eu suava no tanque do consultório. Claro que eu reclamava, mas eles nem se mexiam. Para ser mais fiel ao espetáculo, deveria escrever “elas”, pois eram sete mulheres e só um homem, entre hóspedes e gente da casa.

Foi imediata a associação com a cena de uma savana africana num fim de tarde. Aquela hora em que ninguém come mais ninguém, reinando a paz entre presas e predadores.

Fiquei feliz ao ver o terraço da minha casa servir de savana para aquele bando de animais de olhares vagos e conversa arrastada. Todos eles mereciam aquela paz de começo de noite. Quatro deles, o homem, sua mulher e duas filhas, tinham vindo de São Paulo, depois de trabalhar muito, todos eles, em troca de alguns dias de sossego entre os amigos da Paraíba. As outras três, uma avó, uma filha e uma neta, faziam as honras da casa e tiravam proveito do clima de vagabundagem.

A mim, restava sentir inveja de não poder ficar ali, envolvido por aquele miasma benfazejo, deixando o corpo se entorpecer pelo afeto bom e silencioso que circulava entre as criaturas de modos bovinos ou felinos, segundo suas índoles.

O tempo se arrastava no consultório. Édipos, narcisismos, traumas infantis, tudo aquilo me parecia sem sentido. Tinha vontade de dizer a cada paciente que não valia a pena tanto sofrimento. Bastaria que fossem passar alguns minutos no terraço da minha casa. Veriam, então, que tudo o que procuram na vida poderia ser encontrado ali: a possibilidade de conviver em paz com seus semelhantes, como os bichos convivem nos fins de tarde nas savanas.

_________
blog-do-rona.blogspot.com
memoriadofogo.blogspot.com
/////










quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Calcinhas (Raymundo Netto)



Por hábito, em tempo demais diante deste monitor, passeio pelos cantos da casa.

Num desses, alonguei-me à cozinha, esbarrando com o cesto de roupas estranhamente deslocado. Conhecendo o método da esposada, senti-lhe o esquecimento, e daí, vítima que sou da convivência cordial (poderia simplesmente fingir não ter visto que todos acreditariam, assim como fazem meus iguais) decidi eu mesmo pôr ao sol, no varal de chão da varanda, tais roupas.

Foi quando me dei conta de que tudo aquilo eram calcinhas (de minha esposa e das duas filhas). Pus-me a estender, uma a uma, a calcinhada. Na hora (quem escreve está sempre pensando bobagens), lembrei uma amiga que defende: os homens acreditam que cuecas nascem, no fundo escuro de suas gavetas, por geração espontânea! Obrigo-me a concordar. Conheço várias mulheres que estranham o infindável tempo de vida de nossas cuecas. Com meu pai também era assim. Geralmente, são elas, as esposas, que se ocupam de renovar-nos o acervo. Ao contrário, nós, homens, somos tomados pelo espanto do nada suficiente das mulheres: nem calcinhas, nem sapatos, e imagine o que mais... Elas são muitas dentro de uma só, justificada a complexidade de suas irresistíveis almas femininas. Comecei a pensar se existiria uma média racional entre o número de calcinhas para cada sutiã ou pescoço. Lembrei também de uma curiosidade: no Japão, para combater o calor, vendem-se, em máquinas encontradas no meio da rua — e em embalagens como as de sorvete —, “calcinhas geladas”, que, segundo os fabricantes, são recomendadas também para serem usadas nas cabeças. Imaginava a ridícula cena, quando percebi que das demais varandas e janelas dos outros apartamentos, algumas vizinhas ou suas empregadas observavam-me ao serviço. Surpreendidas se riam, desapareciam das janelas, escondiam-se por trás das cortinas. Já embaraçava-me, quando veio-me a ideia de colocar os pregadores de roupa (em Londres já existem pregadores com previsão de tempo, sabia?), mas eram tantas as calcinhas...“Haja pregador!” Ah, assim já era servilismo demais... Voltei ao trabalho e as esqueci.

À tarde, porém, num dos passeios pela varanda, constatei: as calcinhas, insufladas pela iniciativa de uma fresca, tomaram vida e voaram rumo ao ignoto. Tragédia anunciada! Pensei na bronca da esposa: “Quem mandou mexer no que não era chamado?” Bem que eu poderia culpar o macaco Chico, o do Lalau, aquele que, tarado por calcinhas, invadia as residências do Bonsucesso carioca a roubá-las e as rasgava em cima dos telhados. “Não, ela não acredita em literatura”... Tive que, então, rapidamente, catá-las no térreo, nas garagens, no jardim. Vendo uma a tremular à grade da janela de baixo, pensei em passar na vizinhança, bater-lhe à porta a recuperá-las. Indecoroso seria o zelador, com fingida normalidade, perguntar-me, calcinhas à mão, “É do senhor, seu Netto?”, e eu ter que, com constrangimento, responder-lhe que sim.

À medida que as encontrava, recolocava-as no varal, desta vez com os pregadores, antes de minha esposa chegar e ver o mal feito. Então, jurei a mim mesmo: nunca mais nesta vida haveria de tocar numa calcinha, a não ser na presença da usuária, e se, e somente se, ela me estorvasse em qualquer coisa.

_________
Raymundo Netto que não entende nada de calcinhas, mas tem curiosidade em ver uma “aumenta bumbum”... Contato: raymundo.netto@uol.com.br – blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com/
/////