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sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Quem tiver ouvidos, ouça (Nilto Maciel)




No julgamento histórico dos Lobos, os juízes e acusadores, condignamente trajados, ora fumavam, ora cochilavam, ora bebiam água.

Horas e dias assim, fatigantes, calorentos, palavrosos. Os réus amparavam-se uns nos outros, comunicavam-se entre si por gestos, códigos, ruídos imperceptíveis aos homens da corte. Os mais sagazes sempre arranjavam jeito de transmitir a melhor resposta aos mais ingênuos. E conseguia o grupo enfurecer cada vez mais os gordos e imprevisíveis julgadores.

– Responda você – o juiz-presidente apontou para um dos acusados – sem errar, sem tomar fôlego: quem foram Remo e Rômulo?

O Lobo apontado olhou para cada um de seus companheiros, piscou os olhos, gaguejou. O inquisidor martelou a mesa, queria resposta pronta.

– Foram dois homens...

Na sala de audiências, a respiração de todos parou, juízes e acusadores de olhos vidrados, grudados na boca entreaberta do Lobo.

– Então?

E de novo o arfar dos peitos, o cair das mãos, o bater das pálpebras, o chiar dos lábios fizeram a sala viver.

– Vocês são uns néscios. Quis habet aures, audiat. Pois saibam que Remo e Rômulo foram amamentados e criados por uma loba. Apesar disso, a espécie lupina não deixa de ser cruel, desnaturada, selvagem.

– Como assim, se até salvamos homens, conforme vocês mesmo dizem?

– Não confunda alhos com bugalhos, idiota. Uma única boa ação não pode servir de atenuante, quando o acusado praticou mil crimes inomináveis.

– No entanto, essa única boa ação é a base de toda a história do homem ocidental.

Os julgadores e acusadores reagiram em cadeia. O Lobo acabava de dizer a maior tolice do mundo. Só podia ser um louco. Achincalhava a Justiça Humana.

– Deixem-me concluir: sem Rômulo e Remo, não teria sido fundada Roma. E, se Roma não tivesse sido fundada, não teriam existido os Césares, o Império, a República, a civilização romana. Nero não teria existido, nem o incêndio nem o latim. Qui habet aures, audiat. Sem o amor e o leite da loba, os gêmeos não teriam sobrevivido. Logo, a Loba é a matriz de Roma e, em consequência, da civilização ocidental.

– Isso é loucura. Vocês são uns loucos. Falam como loucos.

– Não, excelências, somos apenas lobos e como lobos falamos.

O juiz-presidente bateu o martelo na tábua da mesa, ordenou silêncio e gritou:
– A partir de agora fica incorporado ao Código Penal o seguinte artigo:
“Quem for lobo e como ele falar, será condenado à morte pela caça, pelo desmatamento, pela poluição.”
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