No julgamento histórico dos Lobos, os juízes e acusadores, condignamente trajados, ora fumavam, ora cochilavam, ora bebiam água.
Horas e dias assim, fatigantes, calorentos, palavrosos. Os réus amparavam-se uns nos outros, comunicavam-se entre si por gestos, códigos, ruídos imperceptíveis aos homens da corte. Os mais sagazes sempre arranjavam jeito de transmitir a melhor resposta aos mais ingênuos. E conseguia o grupo enfurecer cada vez mais os gordos e imprevisíveis julgadores.
– Responda você – o juiz-presidente apontou para um dos acusados – sem errar, sem tomar fôlego: quem foram Remo e Rômulo?
O Lobo apontado olhou para cada um de seus companheiros, piscou os olhos, gaguejou. O inquisidor martelou a mesa, queria resposta pronta.
– Foram dois homens...
Na sala de audiências, a respiração de todos parou, juízes e acusadores de olhos vidrados, grudados na boca entreaberta do Lobo.
– Então?
E de novo o arfar dos peitos, o cair das mãos, o bater das pálpebras, o chiar dos lábios fizeram a sala viver.
– Vocês são uns néscios. Quis habet aures, audiat. Pois saibam que Remo e Rômulo foram amamentados e criados por uma loba. Apesar disso, a espécie lupina não deixa de ser cruel, desnaturada, selvagem.
– Como assim, se até salvamos homens, conforme vocês mesmo dizem?
– Não confunda alhos com bugalhos, idiota. Uma única boa ação não pode servir de atenuante, quando o acusado praticou mil crimes inomináveis.
– No entanto, essa única boa ação é a base de toda a história do homem ocidental.
Os julgadores e acusadores reagiram em cadeia. O Lobo acabava de dizer a maior tolice do mundo. Só podia ser um louco. Achincalhava a Justiça Humana.
– Deixem-me concluir: sem Rômulo e Remo, não teria sido fundada Roma. E, se Roma não tivesse sido fundada, não teriam existido os Césares, o Império, a República, a civilização romana. Nero não teria existido, nem o incêndio nem o latim. Qui habet aures, audiat. Sem o amor e o leite da loba, os gêmeos não teriam sobrevivido. Logo, a Loba é a matriz de Roma e, em consequência, da civilização ocidental.
– Isso é loucura. Vocês são uns loucos. Falam como loucos.
– Não, excelências, somos apenas lobos e como lobos falamos.
O juiz-presidente bateu o martelo na tábua da mesa, ordenou silêncio e gritou:
– A partir de agora fica incorporado ao Código Penal o seguinte artigo:
“Quem for lobo e como ele falar, será condenado à morte pela caça, pelo desmatamento, pela poluição.”
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