Translate

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Estaca zero: A literatura renova pergunta (Eduardo Luz)




Através do registro simbólico, o romance de 30 colocou a grave pergunta sobre a teimosa permanência da miséria nordestina. Os dramas regionais então representados pela Literatura lograram receber uma resposta a partir da utopia configurada pelo "nacional desenvolvimentismo" dos anos 50 e 60. Estaca Zero1, de Nilto Maciel, irá renovar a pergunta formulada por aqueles romancistas sociais, conectando Literatura e História por meio de uma intertextualidade deliberada, sardônica e emocional, capaz de sustentar o painel alegórico do cruel processo de nossa formação social.

Herdeiro de uma vila originalmente composta por seis casas, Cesário Valverde assiste atônito a disseminação, pelas terras de sua propriedade, do que viria a chamar-se favela Estaca Zero:
“Gente vinda de todas as partes, especialmente do sertão, invadiu, o local e, às ocultas de Cesário, construiu casebres de madeira, onde passou a viver. E assim nasceu a favela.”2

Sem forças para administrar o negócio, corroído pelo álcool e pela Literatura, Cesário "torra" sua propriedade, a qual termina em poder do incorporador e construtor Luiz Rolim. Por decisão judicial, o despejo configura-se: um morto e vários feridos é o saldo desse confronto envolvendo soldados e favelados. Amargurado por tal desfecho, humilhado e pobre ("Aquele dinheiro (da venda de Estaca Zero) não durou nada, um ano ou pouco mais. Hoje estou na miséria, sem um tostão.”3) Cesário, transitando entre as esferas da realidade e da fantasia, escreve num caderno a fábula da degeneração da vila e de sua própria existência. Ao longo do discurso, inúmeras questões literárias são colocadas por ele, e tencionam alimentar (para si e para o leitor) a crença na salvação pela força mítica da palavra:

“Sobretudo porque este relatório é para mim uma confissão, uma análise, a porta por onde poderei escapar da loucura."4

A estrutura compositiva altamente requintada, montada por Maciel, responde pela densidade do romance. Cesário Valverde configura transparente analogia com Cesário Verde, o poeta português. Valverde, tal como Verde, é vinculado fortemente a figura do pai, figura cujo espírito prático contrapõe-se ao temperamento sensitivo do filho. A expressão desse desconforto aparece no “caderno” de Cesário Valverde e no "livro" de Cesário Verde. A intriga. trabalhada por Maciel, em que Valverde é o narrador-protagonista, reflete uma constante distorção do real, numa espécie de realismo íntimo que se confunde com a consciência de culpa. Tal como Cesário Verde, o protagonista de Estaca Zero flutua entre o registro impressionista e o expressionista. As páginas de Valverde, narrando seus "passeios", incógnito ou não, pela vila-favela, têm a marca temporal e a deformação dos objetos que resgatam o clima opressivo e a intenção purificatória de O sentimento dum ocidental.

Multiplicadas outras referências literárias, sutis ou não, concorrem para a conquista da realidade através da linguagem. Estão em Estaca Zero José de Alencar (resgatado precipuamente como autor de romances indianistas), Graciliano Ramos (o de São Bernardo, essencialmente), José Lins do Rego, Campos de Carvalho, Drummond, o Machado d'"O delírio":

"Não adiantava correr, nem reagir. Apenas olhei para os índios. E esse olhar durou um segundo. E nesse segundo vi tanta coisa que nem num romance dá para contar. Nesse segundo tão comprido eu me vi longe dali, metido nos tempos passados. E sucedeu o milagre. Pois quando voltei à realidade, cadê caititu? Nem sonho deles. Apenas os rapazes arrumavam os galhos, separavam as frutas, como se não tivesse acontecido nada.”5

Napoleão Valverde, pai de Cesário, "fez plantar árvores frutíferas, laranjeiras, mamoeiros, coqueiros, bananeiras, verdadeiro jardim do Éden...”6 nos fundos das seis casas que a princípio constituíam a vila Estaca Zero. Cesário recorda esse fato e faz-nos lembrar do carioca Frei Francisco de São Carlos, autor de A Assunção (1819), onde o Paraíso, local de glorificação da Virgem Maria, está plantado com árvores típicas da natureza brasileira.

Puras alusões literárias, contudo, não sustentariam a reflexão profunda de Estaca Zero sobre todo um sistema social tragicamente discriminatório. Diz-nos então Cesário Valverde ser amante de Literatura... e de História do Brasil. Cesário, também ele expropriado (embora do mundo que o cerca), abriga-se num universo supra-real cuja verossimilhança configura-se pelas referências tanto literárias como históricas.

Em certo "desfile carnavalesco” e a "carnavalização" e processo de Nilto Maciel em meio a inúmeros personagens históricos, a foliona que acompanha Valverde é “uma Iracema”, e esta o chama “Martin” (franca menção as personagens alencarinas Iracema, brasileira, e Martim Soares Moreno, português). Todo o jogo que articula Literatura e História, na medida em que dissolve e funde ambas as disciplinas, é o que mantém o romance nos trilhos. Paradoxalmente, é nos momentos em que a personagem "delira", conversando ou não com “fantasmas", é nesses momentos que a crítica a realidade é mais forte, uma vez que a interpenetração das disciplinas, postas no enunciado como paixões do narrador, funciona como peça articulante.

Literatura e História, pois, caminham juntas, indistintas na alegorização: "Um dia o meu professor de História me viu sobre um desses livros, conversamos, tornamo-nos amigos. E me fez enlouquecer – emprestou-me um exemplar raro de uma loucura: Antiga História do Brasil – Tratado Histórico de Ludovico Schwennhagen. A seguir vieram Capistrano, Cardim, Gardner, Martius, Tomaz Pompeu, Antônio Bezerra, Gustavo Barroso, Rodolfo Teófilo e até Os Sertões.”7

Ousaria sentir falta de Frei Vicente do Salvador...

Como nas obras construídas com rigor, nada em Estaca Zero é gratuito. Há referências freqüentes que aproximam favelados e índios, uns e outros desapossados das terras que habitam. A expulsão dos favelados, os quais impuseram forte resistência à ação policial (aquela "Canudos”) resgata, por força de uma dupla voz, o extermínio dos índios brasileiros, aqui associados ao processo de colonização empreendido pelos portugueses. Pergunta-se Cesário Valverde (ou o português Cesário Verde?):
“Por que aquela gente favelada me chamava de português e me atirava flechas? Onde fui arranjar essa metamorfose de costumes?"8

Concorrendo para a coerência interna de Estaca Zero, haveria ainda a registrar recorrências na obra de Maciel, como o "humor meio perverso”9 e a onomástica fortemente sugestiva, que às vezes aparecem conjugadas, como no caso do marginal Prateado, que rouba ouro... Em outras ocasiões, no entanto, ata-se o humor à deformidade expressionista, como na cena em que a irmã de Cesário retorna da cozinha, onde fora buscar água para o corretor Esmeraldo:
"E Josefina pequenina, menina antiga, apareceu à entrada da sala, feito fantasma, a carregar uma gota d’água num mundo de alumínio.’’10

Também caberia lembrar o que Francisco Carvalho já observara: "a presença ostensiva de gatos e ratos na ficção de Nilto Maciel."11 Em Estaca Zero, trabalhando um personagem de sensibilidade exacerbada, esse tema persistiria. Cesário vê-se como um rato, espezinhado que é pelo tabelião Vicente: "Diga-me: você gosta de roer? Como andam os seus molares? Quer experimentar a sola do meu sapato? É durinha. Ou prefere roer livros?"12

E, mais adiante: "Não, não me olhe com esse olhar de rato diante do gato."13

Estaca Zero é assim um texto em que a atmosfera delirante e a denúncia realística funcionam articuladas. Em certa representação onírica, sentado à cabeceira da mesa, "um homem baixo e gordo fazia o papel de Getúlio.”14 À cabeceira, destaque-se. Foi em pleno governo getulista, em l952, que foi criado o BNB – Banco do Nordeste do Brasil, que pretendia, entre outras metas, desenvolver a irrigação e promover orientação técnico-agronômica. Sete anos mais tarde, emergiria a SUDENE, também relacionada com essa visão desenvolvimentista. Hoje, quatro décadas depois, em meio a extrema seca, perguntamo-nos: onde está a Literatura? Mas há alguns anos, com Estaca Zero, Nilto Maciel já estava a renovar a pergunta do romance social de 30, desvendando o visível sem reproduzi-lo, através de uma intertextualidade que ressintetiza a tradição, sem deixar de fazer ouvir sua voz própria. Um texto cuja leitura é a leitura de todo um sistema de textos, que é um fenômeno relacional, mas que não faz perder de vista a chaga aberta da injustiça social, a cuja visão não se pode absolutamente fugir.

Fortaleza, 1/5/1993

1. MACIEL, Nilto. Estaca Zero. São Paulo: Edicon, 1986.
2. Ibidem, p.39-40.
3. Ibidem, p. 54.
4. Ibidem, p. 25.
5. Op. cit., p.22.
6. Ibidem, p. 17.
7. Op. cit., p. 13.
8. Ibidem, p. 47.
9. AZEVEDO, Sânzio de. "Os contos de Nilto Maciel”. In: AZEVEDO, Sânzio de. Novos ensaios de literatura cearense. Fortaleza: UFC/ Casa de José de Alencar, 1992. p.108.
10. Op. cit. nota 1, p. 25.
11. CARVALHO, Francisco. "As insolentes patas do cão". In: LITERATURA: Revista do escritor brasileiro. Brasília: Scortecci, 1992. N.º. 3, dez/92. p. 45.
12. Op. cit. nota l, p. 56.
13. Ibidem, p. 56.
14. Ibidem, p. 28.

(Revista Literatura n.º 5, Brasília, dezembro de 1993)
/////