Translate

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Um novo homem (Nilto Maciel)



No dia de seu último natalício, Erialdo se viu agraciado com um pequeno cão. O presente saiu do coração solteirão de uma colega de sala. Por que diabos fulana presenteou-lhe aquela coisa viva? Bem podia ter pensado num acessório para o carro ou numa camisa.

Com o tempo, Erialdo se afeiçoou ao animal, a quem deu o nome de Ecce Homo, em homenagem ao seu antigo professor de latim.

Ecce Homo fez de Erialdo um novo homem, modificando-lhe os hábitos. Assim, em vez de assistir a todas as novelas da televisão, Erialdo brincava de esconde-esconde com o cãozinho; em lugar de banhar-se durante uma hora, mal se asseava; em vez de dar pedacinhos de bife aos filhos gulosos, agraciava o animalzinho com gostosos petiscos. Um novo Erialdo, enfim. Não perdia mais tempo com rememorar os difíceis tempos de São Paulo, quando sacrificava a saúde para ganhar o pão e se embriagava nos fins de semana. Apagou da memória a felicidade vivida ao ser aprovado no concurso para ingresso no funcionalismo público. Já não se lembrava da garota bonita que conheceu nas praias cariocas, num domingo de muito sol e batida de limão. Nada mais da lua-de-mel, nem do nascimento do primeiro filho, do batizado e daquelas migalhas de alegria.

Antes de Ecce Homo, acordava sonolento às oito horas, para tomar banho e café e correr para o trabalho. Depois, pulava da cama antes mesmo de o cachorro latir. Sacolejava-o com carinho e saíam para o primeiro passeio. Pela corrente ligada à coleira, puxava o cão para cá e para lá, às vezes a correr, outras a passo lento, sempre de acordo com os quatro passos de Ecce Homo, Enfrentava o vento gelado e a curiosidade dos outros madrugadores. Às oito horas em ponto regressava ao apartamento. Antes de ir trabalhar, porém, fazia mil recomendações à babá: não esquecesse o leitinho das nove horas, não gritasse com o bichinho, não batesse, desse o banho morno, para evitar resfriado.

Não durou muito esse namoro. Ecce Homo um dia soltou-se das mãos do amo, para morrer debaixo de um carro. Para quê!

Dias depois chegou a vez do próprio Erialdo.
/////