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terça-feira, 21 de novembro de 2006

De fantasmas e de favela: relatos (Hygia Calmon Ferreira)




Numa primeira abordagem de Estaca Zero de Nilto Maciel, a articulação interna do texto coloca o leitor diante de uma relação de tensão dialética entre a voz do narrador-personagem e as demais vozes. É assim que a ideologia subjacente se revela, implícita o explicitamente, através do dúplice discurso: de um lado, a figura do algoz/opressor/manipulador – a força, a persuasão, a ordem institucionalizada, o insulto, a imposição, o "sermão” –, da qual se fazem representantes Dr. Anísio Tanlares (o juiz), Dr. José Monte (o psiquiatra), Cordeiro Matos (o major), Luiz Rolim (o construtor e proprietário do terreno), Carlos Marinho (advogado do então comprador), Vicente (o tabelião), Seu Bernardo (o falso oprimido), Esmeraldo (o corretor) e, por extensão, a mulher deste, Violeta (a alienada); de outro, a figura do réu/oprimido/manipulado – o aniquilamento, aceitação, o caos, o silêncio do "sem voz", a submissão, o discurso fragmentado e por vezes ilógico de Cesário Valverde, anterior dono da favela Estaca Zero. Josefina, a irmã, é o ser alheio que se manifesta parcamente através de rezas, resmungos e cochichos.

Nesta nossa rápida leitura, porém, o que pretendemos ressaltar é o fazer poético, que se traduz em questionamentos ao próprio ato da criação literária, ao "exercício literário”, para usar uma expressão do narrador no final da história. Antes, o que se vê é o "escritor" Cesário transitando entre lucidez e loucura. A referência a outras “esferas” como a das visões, alucinações e delírios nos dá a medida exata do desvario em que se encontra acometido esse personagem, e que vai num crescendo até que vê a luz no fim do túnel – "estou salvo e escritor" –, e começa a se livrar da paranóia de sentir-se perseguido até no mundo dos sonhos.

Na verdade, o que Nilto Maciel faz em Estaca Zero é repensar o ato de narrar, começando por negar ou questionar alguns atributos do criador, às vezes enfática, às vezes ambiguamente, como se vê nas seguintes assertivas: "(...) jamais me julguei um iluminado, um poeta, a não ser na juventude”; "Não pretendo fazer literatura com estes apontamentos"; "preferi o nada, a leviandade, a linha reta do pensamento"; "É a esfinge que me faz escrever – ordenar palavras"; "Desconheço teorias e regras (...)"; "desde o princípio(...) vem me importunando uma questão literária — como pode o memorialista se livrar do presente ou narrar o passado sem qualquer envolvimento com o presente?"

Ao final da narrativa de Nilto Maciel, fica para o leitor a certeza de que o caderno de Cesário é a tábua de salvação a que se agarra o escritor, o espaço textual onde personagem e autor realizam seus projetos poéticos.

(Tribuna da Fronteira, Mafra, SC, 24/12/1987)
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