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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Sempre gostei de rosas vermelhas! (Daniel Lopes)




Difícil é te explicar porque foi que eu resolvi escrever depois de tanto tempo. Tudo parece tão absurdo que eu não consigo sequer imaginar um meio de começar a te contar. Talvez pelo início seja o melhor meio, mas é difícil também saber onde e quando tudo se iniciou. Vou começar então por onde a gente terminou. Naquela manhã chuvosa de domingo em que te perdi pra sempre. Talvez tudo tenha começado exatamente naquele momento, quando comecei a descer as escadas pra fugir do teu quarto e continuei a descê-las, mesmo quando cheguei ao porão. E continuei a descê-las, mesmo quando não havia mais escadas e eu arranquei as lajotas com as mãos e continuei a cavar e a descer até me embrenhar entre os vermes, longe das flores. Você sabe, sempre gostei de rosas vermelhas, embora aqui embaixo nunca tenha havido muitas delas.

Quando saí da sua casa naquele dia percebi que não havia mais jeito, que não havia mais um meio de voltar àquele passado onde havíamos sido felizes, porque eu, sempre eu, tinha destruído tudo outra vez e, dessa vez, eu o sentia, era pra sempre. Então fugi. Abandonei os ringues, as luvas vermelhas, o cinturão de campeão brasileiro de boxe, categoria peso pesado. Então fugi e abandonei os pequenos palcos e o meu piano branco, e quebrei meus discos de vinil forte, e decidi que rolaria no estrume até onde minha alma pudesse suportar.

Voltei pro crime. Você sabe que eu tenho habilidade pra isso. Retornei também ao pó que sempre me fez subir, mas que também já me passou rasteiras imensas. Estava sujo outra vez, mais sujo que nunca. Entretanto, no panorama negro da noite, entre cartas de baralho, carreiras, copos sujos de vodka, de conhaque e homens que atiravam com a mesma espontaneidade com que sorriam, muitas vezes me vinha nítida aos olhos a tua figura. Então eu me levantava no meio do jogo e tudo, e corria pra tentar tocar teus cabelos sempre amarelos e soltos, mas, quando chegava perto e tocava, só havia a noite, quente e densa. Aí eu voltava pra mesa e sorria e meus companheiros, todos tão subterrâneos e brutos, alguns até mais subterrâneos e brutos que eu, aconselhavam-me para que parasse com o pó e deixasse um pouco o conhaque e a vodka de lado. Mas eles não entendiam que eu estava decidido. Não entendiam que nós havíamos sido crianças juntos. Você se lembra de quando me emprestava sua bicicleta verde e, à noite, brincávamos de pega-pega até nossas mães nos buscarem furiosas? Às vezes você ia na bicicleta e eu ia a pé, outras vezes eu ia na bicicleta e você ia a pé. As mães ainda existiam naquela época. Mas agora não há mais mães. Agora está tudo fora de lugar e eu apunhalei meu anjo, esqueci da nossa ternura, do Deus em quem confiávamos: TE PERDI PRA SEMPRE!

***

Arquitetar crimes não é como compor canções, ou estudar um adversário no quadrilátero. Arquitetar crimes tem segredos e idiossincrasias específicas. Eu elaborei assaltos perfeitos. Transportei drogas em lugares que ninguém jamais poderia imaginar. Mas um dia falhei. Lembra do grande roubo à agência central do Banco do Brasil? Fui ferido. Na barriga. Quase morri, mas os anjos do mal que comigo andavam conseguiram um médico que aceitou me operar, mesmo num barraco de madeira podre onde a noite entrava por todos os lados, entre as frestas. Sobrevivi. Ganhei uma cicatriz imensa na barriga e algumas dezenas de rugas em cantos do rosto onde a barba não pode encobrir.

Estava novamente de pé, na noite, e novamente o pó me acolheu e me levantou. Por pura maldade atirei num cachorro branco que latia à noite na rua Guaianases. Atirei também em alguns dos que se esforçaram pra me salvar. Não pelo egoísmo de ficar com todo o dinheiro, mas pelo simples gosto da traição, da mais vil traição. Quando era pequeno também fiz desaparecer a aliança do teu padrasto, isto mesmo, fui eu quem roubou a aliança, e você apanhou até que na sua pele brotasse imensos vergões negros, feito lagartas. Você sabe… sempre gostei de rosas vermelhas.

Mas vivemos sob as chagas de Cristo e às vezes, sempre na noite, eu chorava. Chorava pela loucura e o mal que usavam meu corpo, minha mente, meus braços. Chorava pelo pai que nunca tive. Chorava pelo nosso bebê que eu fiz você arrancar da barriga. Chorava por todos os crimes que havia cometido e por todos que sabia que ainda iria cometer. Chorava por ter ferido você, o anjo que perdi pra sempre. Longe de você, das luvas, das teclas, toda energia boa ou má que existia em mim e que poderia se transformar num beijo terno, num bom cruzado no ringue ou numa canção bonita se tornava atos vis e criminosos.

Mas vivemos sob as chagas de Cristo e um dia, quando eu me sentia superior e imortal, senti brotar na minha barriga, ao lado da cicatriz da operação, um pequeno nódulo, talvez o primeiro sinal de uma inflamação. A princípio não dei atenção alguma, apenas continuei, na noite. Só que, quando amanheceu, eu vi que o nódulo havia explodido e que de dentro dele, além do pus, saía um pequeno pedaço de tecido vermelho. Tinha textura delicada, o tecido, parecia camurça, mas, por incrível que pareça, era ainda mais macio que a mais macia das camurças.

Ó Deus, por que não fugimos pro meio do mato enquanto ainda era tempo? Por que não fizemos uma casinha simples, no pé de uma serra onde nas janelas houvesse cortinas brancas, como se todas elas, as janelas, estivessem usando vestidos de noiva? Por quê?

Agora é tarde, porque aquele pequeno pedaço de tecido que brotou na minha barriga, aos poucos, foi crescendo. E até que era bonito, mas o pus continuava a correr o tempo todo junto a ele e, Deus, como doía. Não soube muito bem o que fazer. Eu nunca soube muito bem o que fazer. Apenas ficava lá, suportando a dor e acariciando com a pontinha dos dedos aquele vermelho tão pequeno e delicado.

Vermelho que crescia e desabrochava e parecia sugar todas as minhas forças, uma vez que eu me sentia fraco e minha pele, e meus olhos, estavam anêmicos, amarelos. Todavia, apesar da dor e do cansaço, eu estava feliz, porque do meio de todo aquele pus e daquela ferida, que agora era enorme, surgia algo bonito.

Quer saber o que era aquele pedaço tão singelo de vermelho? Eu tive de esperar mais de uma dezena de dias pra que ele se mostrasse inteiro. Você não vai acreditar, eu mesmo não acreditaria se uma outra pessoa me dissesse. Apesar de, hoje, isto me parecer tão normal quanto uma espinha, naquele tempo eu custei muito a acreditar. Cheguei a pensar que estava enlouquecendo, ou que o pó já me dava alucinações. É difícil pra qualquer um ver brotar na sua barriga (violento, vermelho, macio, ereto) um botão de rosa. Isto mesmo, você sabe… sempre gostei de rosas vermelhas!

Só que a coisa não ficou num botão apenas. Dia após dia, sugavam-me as forças, os galhos, os espinhos, as flores de toda uma roseira. Meus olhos, eu via no espelho, não tinham mais cor alguma. Cada espinho, da roseira que crescia, que passava pela minha barriga, fazia-me sentir dor como a de um dente arrancado sem anestesia. Mas a roseira era linda, a mais linda que eu já havia visto. Era bom acordar pela manhã e vê-la lá, tão imponente na minha barriga. Difíceis eram as coisas simples, como conseguir comida, ir ao banheiro ou levantar da cama. Eu já tinha perdido trinta quilos. Era bonita, a roseira, mas estava me sugando a vida, e eu sou feio, egoísta e mal. Dar cabo da roseira era preciso, antes que ela desse cabo de mim.

Preparei minha navalha de cabo de marfim, um pano branco e o álcool indispensável. Manhã de outubro. Abri a navalha. Manhã de outubro. Bebi e fechei os olhos. Manhã de outubro. Segurei o pezinho da roseira com uma das mãos e com a outra passei-lhe a lâmina… O sangue jorrou e, por Deus, não existe dor maior no mundo… Apertei o pano forte contra a ferida e tentei me levantar, mas minhas vistas se escureceram e eu achei que tinha morrido.

Entretanto acordei e me sentia forte. Continuar a viver era necessário e até que era bom poder viver, e caminhar pelas ruas, e ser livre. Mas minha liberdade, eu ainda não sabia, duraria pouco, pois a chaga da barriga mal cicatrizara e já me brotava outra roseira no braço direito. Novamente repeti o processo da navalha, do marfim, manhã de novembro. Mas aí começou a nascer o vermelho na minha perna. Da perna espalhou-se para a virilha e por mais que eu repita, até hoje, o processo da navalha, das toalhas brancas, sei que não vai adiantar.

Amanhã é natal. Cinco anos que eu não te vejo.Tenho aqui comigo um revólver. Quando terminar de ler esta carta, procure no jardim da sua casa a rosa que está num vaso de cerâmica branca. O corpo estará um pouco mais distante, na praça em frente à catedral.

Feliz natal! Se eu pudesse começar de novo, mudaria tudo.

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