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sábado, 1 de outubro de 2005

O pecado de André Gide (Nilto Maciel)


Bomfim fechou a porta e parou na calçada. Olhou para um lado, para outro e tirou a sorte: esquerda ou direita? Acendeu um cigarro, ergueu os olhos para o céu e seguiu. Nem os cachorros da noite davam sinal de vida e a luz fraca das lâmpadas dos postes se derramava sonolenta pelo chão. Sua sombra ia e vinha, a crescer e desaparecer, como num filme de terror.

Não havia nenhuma pressa em seus pés, nem sequer algum desígnio em seus olhos. Bastava andar, acompanhar o desenho dos próprios passos, para cansar-se e poder dormir. Em casa os ratos brincavam de esconde-esconde, enquanto o gato morria de emoção no canto da parede. Os livros se espremiam na estante, Proust a empurrar Gide para lá, Thomas Mann a sufocar Hermann Hesse. Na sala o alcatrão e a nicotina se misturavam à alfazema do desejo. A cama esparramava-se pelo quarto, desajeitada, fria, feia, feito mulher indesejável – coberta de mofo, de lodo, de todos os cheiros ruins da solidão.

Na ponta da rua, uma nesga de luz cortava o chão da calçada de um amarelo claro e projetava a imagem retorcida e tosca de um fantasma. Que rugia, ou blasfemava, ou ameaçava. E Bomfim conteve mais a maciez dos passos e outra vez tirou a sorte: seguir ou voltar? Em seus olhos brilhou o último desígnio – o medo. E não voltou.

A figura se contorcia no chão, aureolada de ouro, poderosa, fascinante, a boca a espumar de desespero – insanamente.

Bomfim desviou-se para a ponta da calçada, quase apressado, um olho na réstia, outro em casa. Os ratos escalavam as paredes, o gato miava de prazer. Uma voz se colava aos seus calcanhares. Gide tombava, Hesse gemia.

Súbito, o braço agudo saltou de dentro da luz e Bomfim correu. E saltou pedras, chutou barros e espantou burros. Até desequilibrar-se e ir ao chão.

No corre-corre, o outro também tombou, deixando cair um punhal às mãos de Bomfim, que o agarrou e cravou na goela traiçoeira.

De volta à casa, encontrou tudo como antes – os ratos riam do gato, Proust empurrava Gide, a sala fedia a nicotina e o mofo inundava o quarto. Nem esperou pelo sono e caiu desajeitado no meio da cama – feito um homem repugnante.

E dormiu, muito, como nunca, a noite inteira, sem um sonho para contar. Amarguradamente só.

De manhã correu aos jornais: o monstro havia voltado, o louco sanguinário, a fera noturna tinha feito mais uma vítima.

O mesmo processo: punhaladas no pescoço. A cidade alarmada, a caça infrutífera, a violência urbana, o descalabro social.

Bomfim deu meia volta, abriu a porta de casa, aspirou a nicotina da sala, chamou os ratinhos de safados, alisou a lombada de Proust, abraçou-se a Gide e sentou-se na beira da cama. E se fosse à polícia contar tudo? Não, só se fosse muito ingênuo. Para virar monstro, louco, fera?
Abriu, ao acaso, seu Gide: “Nathanael, não acredito mais no pecado.”

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