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segunda-feira, 10 de outubro de 2005

A partitura literária de J. M. Leitão (Nilto Maciel)


Leitura apressada de Os Bons e os Maus, de J. M. Leitão, pode dar a impressão de que o romance é composto de dois conflitos centrais: um amoroso e outro político. Aos poucos o drama político se vai apresentando, sutilmente, até tomar corpo e, num crescendo, dar o remate da história. A interligação dos dois dramas se dá em razão do narrador, o médico Jorge Augusto, embora no amoroso ele seja protagonista e no político seja apenas testemunha e participante. No entanto, Luíza, a personagem feminina que compartilha do drama amoroso com o protagonista, não tem relevância. E isto faz dele (conflito amoroso) um drama menor. Logo, em Os Bons e os Maus o atrito homem-mulher é tão-somente ornamento para dar ao leitor mais entretimento. Parece, então, uma incongruência afirmar que o conflito central não é o do amor, embora o protagonista dela seja personagem secundário na célula dramática mais importante. Pura aparência, pois o narrador não desvia de todo o foco da narrativa, ao dedicar algumas páginas ao relacionamento dele com Luíza.

A narração das ações essenciais se inicia após a apresentação de um dos principais personagens. Já a narração de pequenas ações se dá desde o início da narrativa, como no encontro do médico com dom Afonso Ligório. O narrador procura o padre para convencê-lo a dar abrigo a outro padre, o belga Merckwtz, na casa paroquial.

A narrativa é aqui e ali matizada de humour, como na narração do exame médico realizado em Rival Gomes. O doutor Jorge Augusto e o fazendeiro conversam sobre o padre estrangeiro e suas atividades “subversivas”, enquanto se processa o exame: “Dedo enluvado em riste, mandei-o tirar as calças e deitar”. Um pouco de diálogo, outro de narração: “Ainda mal recuperado das dedadas e nu, ouso afirmar, indiferente ao ridículo de seu estado – de matar de rir, seu perfil de bunda batida e barriga abaulada, o velho pôs-se de pé” (...) É quando surge a principal personagem feminina do romance, a “jovem atendente, Luíza, nua”. E é ela o foco de alguns capítulos, especialmente na narração de cenas de amor. O personagem chega a narrar minuciosamente algumas cenas: “Aproximei-me de Luíza, puxei-a pelas nádegas e trouxe-a para mim”.

Logo nas primeiras páginas o narrador se refere a Brasília, onde se encontra ao contar a história. Contudo, é outro o espaço das ações principais da narrativa. A localidade da história fica no Nordeste brasileiro, porém não há nenhuma referência ao nome da cidade. O narrador refere-se sempre ao genérico “a cidade”. Em alguns trechos há descrições minuciosas do ambiente, como no capítulo 10: “Daí em diante, descemos com as dunas à esquerda e as águas escuras na contra lateral nos espremendo e separando de uma estreita faixa de praia, longa de quase dois quilômetros. Na base dessa península, na ponta oeste do manguezal – ali chamado de Lagoa do Boi – igualmente bloqueada por dunas, vamos encontrar, no oásis à sombra de coqueiros, o ajuntamento de casas de pescadores denominado São José das Botas”.

Brasília é apenas uma referência: “Há anos moro em Brasília”. Mais presente nas reminiscências do médico está Fortaleza, como numa cena “nas areias da praia do Futuro”. O espaço principal é descrito a goles pequenos, sem menção a nomes de logradouros: o cais, a cidade, os prédios principais, como o Hospital Municipal, a Santa Casa, o cemitério, as casas e estabelecimentos comerciais freqüentados pelo narrador. Há também um espaço rural: uma chácara e suas cercanias, um rio, “frondosas árvores”.

O tempo cronológico vai aos poucos se delineando, “os exatos dias dos quais pretendo falar”. Pois ao leitor o narrador se apresenta escrevendo um livro, suas memórias, muitos anos depois dos fatos principais de sua história, uns dias de setembro de 1971: (...) “a ninguém mais seria lícito guardar boas recordações daquele setembro e daqueles tempos”.Aqui e ali o leitor se depara com referências ao tempo histórico: “recordo que havíamos ganhado a Copa do Mundo, de futebol, ia de vento em popa a campanha do Ame-o ou Deixe-o e esboçava-se estudada e enganosa abertura”. A narração das ações principais se dá como num diário. A cada capítulo cenas de um dia, separadas por flashbacks.

O protagonista-narrador se apresenta logo no início do “Prólogo”, primeiro incluindo-se num rol (...“se dependesse de nós”...) e, a seguir, mais categoricamente (“Digo-lhes isso para”...). Fica o leitor sabendo que a narração será conduzida por um personagem. Ao contrário do padre, o narrador se vai desenhando aos poucos. Sabe-se que é médico já no Capítulo 2: (...) “meu consultório, no hospital” (...). Mais adiante revela sua idade: (...) “aos trinta e oito anos” (...). O nome aparece poucas vezes: Jorge Augusto.

O segundo personagem a ser apresentado não tem importância no enredo, como quase todos. Trata-se do juiz Romeu Braga Horta. Aliás, mais importante do que este e outros são as baratas, uma praga de baratas, uma “invasão de baratas”.

Um dos personagens essenciais da história é o padre Jean Merckwtz, que surge logo no Capítulo 1. Aos poucos sua figura vai sendo pintada: “padre que veio de longe”, “gringo” e, sob as falsas tintas da pura especulação popular, “camelô”, “caixeiro viajante”, “funcionário público”, “turista”, até “artista de circo”. O próprio narrador reconhece a sua curiosidade de saber quem é o religioso e a sua ignorância da verdadeira identidade do forasteiro e leva ao leitor a sua descoberta: “padre da Igreja Católica Apostólica Romana; dos comuns e de hábito negro”. O retrato completo ou de corpo inteiro do personagem é mostrado ainda no capítulo inicial, porém um retrato de homem transformado ou adaptado ao ambiente: chapéu de palha, bermuda, “oclinhos de fina armação”, montado numa moto Harley-Davidson. E sua biografia: natural da Bélgica (“Nasci em Charleroi, próximo de Waterloo”), a mãe Florense, fixação em Liège, perambulação pela Europa, ordenação no sacerdócio, viagem ao Brasil.

Fundamental também é o “crioulo” Merício Alexandre ou Merício Bodão, vítima de maus tratos praticados por policiais e, por isso, tornado impotente. Parte da trama gira em torno dele ou de sua promessa de vingança. É o conflito político-social.

A principal personagem feminina é a garota Luíza, de dezessete anos, filha do espanhol Carloto Pastana, dono do Cine-Theatro Majestic. Ela toma conta de grande parte da história ou do drama erótico e lírico do livro. Por momentos o padre belga desaparece de cena para dar lugar a Luíza. Ou mais exatamente ao relacionamento amoroso do médico com ela. Um amor quase proibido pela sociedade – um homem casado, de 38 anos, com uma adolescente. E o conseqüente conflito interior do protagonista, a sua angústia de não poder mostrar-se em público ao lado dela, receoso das críticas, das fofocas. Ela, ainda assim, quer se ver ao lado dele em público. E este antagonismo gera o drama.

Os personagens secundários vão aparecendo, desaparecendo, reaparecendo a todo o momento. Como Dalva, a mulher do protagonista, pintada sem nenhuma complacência, como figura grotesca, abominável: “a maioria das vezes ausente e distante; porquanto dada ao vício de me abandonar a cada três ou quatro meses às custas de repetidas e redundantes crises existenciais”.

De maior importância no enredo é Carloto Pastana, quer pelo seu passado na Espanha, (“teria feito a guerra civil espanhola” com Ernest Hemingway), quer por ser pai de Luíza. Outros personagens surgem como caricaturas e mal participam de ações: Mariaelisa, suposta amante do belga; o “rubicundo” tabelião Mariano Estrela; “o seco e encurvado Afonso Ligório”, o vigário da Matriz; Rival Gomes, “velho franzino de profundas olheiras, barriga de bebedor de cerveja e nariz de turco – à coruja –, proprietário de terras”; o juiz Romeu Braga Horta; Júlio, “um amigo de longa data”; o português Taveira, proprietário de uma padaria; as irmãs mexeriqueiras Lívia e Branca Furtado (“Enquanto tirava as roupas, pelas frestas das venezianas descobri as irmãs de volta à vigilância. Lívia, magra e meio careca, gesticulando com Branca e, as duas, de pescoços esticados na direção do jardim da viúva”.); o ginecologista Ivaldo Muralha, “a quem acusavam de roubar peças íntimas das clientes e de não lavar as mãos”; o velho José Geraldo, mais conhecido por “seu Jota”; o baterista Jeronymo Rivera; o militar Etevaldo de Moura Sardinha.

O diálogo direto é um dos recursos expressivos mais usados por J. M. Leitão. Aliás, antes mesmo do início da trama propriamente dita, quando ao leitor está sendo apresentado o padre estrangeiro, acontece o primeiro diálogo. Esse diálogo, porém, é apresentado no interior da narração, como complemento dela. Os diálogos mais freqüentes se dão entre o narrador e o padre belga. As conversas são quase sempre de ordem política, as perseguições sofridas pelo estrangeiro, acusado de invasão de terras, incitação à desordem e formação de quadrilha. O médico e sua namorada também travam nervosos diálogos, ela sempre a desconfiar das intenções dele e ele, acovardado, sem nunca se decidir pelo final feliz.

O romance é basicamente constituído de narrações. São raras as descrições de ambientes, coisas e seres. No capítulo 21 lê-se esta breve descrição: “A mesma sala de outrora, como outrora e acomodados em seus devidos lugares eram o sofá e as poltronas estufadas, a cristaleira e a arca, o tapete, a mesinha de centro e o retrato do falecido”.Os personagens secundários são bem descritos, ao contrário dos principais. Assim, pouco fica sabendo o leitor das características físicas do narrador e de Luíza. Os personagens menores são desenhados com traços quase sempre deformados ou caricaturais. Carloto é assim descrito: “do terno à gravata, andar empertigado e cabelos negros e lisos emplastrados de vaselina, ao corpo enxuto de curvas, ossos retos e angulosos, maçãs salientes e bigodinho adequando-se a múltiplas interpretações. De galã do cinema brasileiro a cantor de tangos, gigolô francês, herói ou bandido mexicano de filmes americanos”.

Embora o narrador esteja escrevendo (por ocasião da leitura o leitor tem esta impressão) ou tenha escrito parte de suas memórias, em nenhum momento ele se define politicamente. E escreve como testemunha ocular, parecendo historiador ou cronista. Nem mesmo a razão de seu bom relacionamento com o “padre subversivo” é explicado.

Em certo sentido, o romance de J. M. Leitão lembra algumas obras de Graciliano Ramos. Não exatamente no modo de narrar. Assim, há nele muito de Angústia, embora o médico de Leitão não carregue aquela angústia, aquele tormento do personagem alagoano. No capítulo 7 o narrador rumina sua paixão por Luíza e lembra o Otelo de Shakespeare: “E malgrado a ausência de tendência a tragédias, longe de querer reproduzir os desvarios do mouro shakespereano, vi-me incorporando Otelo”.

Composto de um “prólogo” e 21 capítulos, constantes de três “movimentos” ou partes, Os Bons e os Maus, de J. M. Leitão, apresenta-se como partitura literária digna de constar dos melhores repertórios.

Brasília, julho de 2001
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