Em Teatro às escuras, Eloésio Paulo disseca a obra de Uilcon Pereira com tal profundidade que receio não fazer aqui outra coisa senão perpetrar plágio. Apesar disso, quero escrever duas linhas de impressões após a leitura do segundo livro da trilogia No Coração dos Boatos, o romance Nonadas, publicado em 1983. No ano anterior havia saído Outra Inquisição e em 1984 editou-se A Implosão do Confessionário.
Referi-me a romance. Será Nonadas um romance? Segundo Eloésio Paulo, na resenha “Texto Onírico”, o ficcionista Manoel Lobato “coloca reservas à classificação do texto uilconiano como romance”. Eloésio, no entanto, não tem nenhuma dúvida: trata-se de romance. E esclarece: a trilogia foi inicialmente concebida como um livro único, “tendo sido feita a divisão (em três volumes) por razões econômicas” do editor.
Referi-me a romance. Será Nonadas um romance? Segundo Eloésio Paulo, na resenha “Texto Onírico”, o ficcionista Manoel Lobato “coloca reservas à classificação do texto uilconiano como romance”. Eloésio, no entanto, não tem nenhuma dúvida: trata-se de romance. E esclarece: a trilogia foi inicialmente concebida como um livro único, “tendo sido feita a divisão (em três volumes) por razões econômicas” do editor.
O livro é composto de diálogos, como nas peças de teatro. Ora, o diálogo é o recurso dramático por excelência, segundo os teóricos. Entretanto, no romance de Uilcon os nomes dos personagens não estão postos antes das falas. No Dicionário de Termos Literários, Massaud Moisés escreveu: “No que diz respeito ao romance e teatro, observa-se que apresentam “em comum serem uma história vivida pelas próprias personagens” (João Gaspar Simões, Ensaio sobre a Criação do Romance, 1944, p. 14). No mesmo verbete anotou: “Na verdade, certos romances românticos ou realistas nos dão a impressão de estar “vendo” as cenas a se desenrolar como no palco. Ainda assim, consideráveis são as discrepâncias: enquanto o romance é uma narrativa, o teatro aborrece a narração em favor da ação, do espaço e do espetáculo; aquele ignora os limites temporais, este é obrigado a movimentar-se dentro de certas balizas.”“.
Não seria, pois, nenhum despropósito rotular Nonadas de teatro. O título do livro de Eloésio é bem claro neste sentido: “Teatro às escuras”. Teatro na acepção de palco, talvez. Ora, no livro de Uilcon não há o narrador, como na maioria das peças. O romance é feito de falas dos personagens, perguntas de uns, respostas de outros. E mais nada. Tudo aparentemente caótico, como num imenso caldeirão de culturas: o falar caipira, a gíria urbana, trechos da Bíblia, português arcaico, erudito e popular, trocadilhos, paródia da linguagem policialesca, versos ou fragmentos de versos de poetas, falas de personalidades da cultura de massa, letras de canções da música popular brasileira, glosas de títulos de livros, trechos de entrevistas, alusões a personagens de filmes e a ensaios literários, como anotou Eloésio.
Há em Nonadas os que perguntam e os que respondem, como num grande tribunal de inquisição. São personagens sem nomes, quase sempre. Os que perguntam são às vezes tratados de forma muito respeitosa, porém sempre com ironia: “senhor polícia do sonho”, “senhor diretor deste museu dedicado à memória de Evarista Pim”, “Conde de Fé e Entrevistador General”, “senhor presidente da convocatória nacional”, “mestres da convocatória brasílica”, “douto inquisidor”, “senhor pároco”, “Inspetor da Santa Irmandade”, “senhor juiz auxiliar”, “senhores membros do Conselho Nacional de Censura” etc.
Um dos inquisidores, ao acreditar estarem os convidados “bestando de novo”, tem um acesso de megalomania (p. 77), ameaça virar a mesa, arrombar a festa, recrudescer. O inquirido discorda do inquiridor: “não pode, pois recrudescer é verbos intransitivos, que não pode ser usado para uma ação pessoal.” O inquisidor se irrita: diz-se a única divindade, o próprio demiurgo. “sou o centro imaginário deste conjunto de entrevistas”; “não gosto de convidados que se sentem amedrontados aquando lhes acuo mediante perguntas”; “sou a divindade, o onisciente, o que se disfarça em oniquestionador. é isso. descobri, finalmente: sou o oniquestionador. sou aquele que interroga...”
Os inquiridos são testemunhas de “crimes” praticados pelo herói ou anti-herói, de quem ainda falarei. Como os inquisidores, as testemunhas também não têm nomes: “senhor escrevente juramentado”, “senhor gonfaloneiro da nossa igreja”, “senhor curador de menores”, “senhor cura”, “senhor pároco”, “horoscopista”, “senhor rabino”, “professor” e outros. As perguntas são sempre curtas e grosseiras ou voltadas para a intimidade do acusado, o protagonista ausente. As respostas, ao contrário, são longas e às vezes confusas.
Quem é o personagem principal do romance? Quem é o herói ou anti-herói? De quem falam os inquisidores e os respondedores? Na página 137 do romance lê-se: “briga de língua não vai garantir a democratura aqui no estúdio na câmara escura onde vocês se deixam sabatinar, e ainda a respeito de um assunto único: as sobras de uma vida os pedaços de um quebra-cabeças, imagens esfareladas vidro moído pela memória, entre-retrato em miscelânea da memória sobre Evarista Augusto Sohl podia ser a melhor reportagem que eu nunca escrevi que eu jamais escreverei Evarista Augusto Sohl existe? é uma só? ou é um grupo de vidros combinados?”
O protagonista tem diversos nomes. O mais frequente é Evaristo, seguido de sobrenomes como Mil, Benin, Hitopadaça, Pantchatantra, das Panelas etc. Há ainda variantes como Evarisno Bataie. Há também a forma feminina, Evarista, seguida de sobrenomes como Pim, Euil, Óio, Augusto Sohl etc. Na verdade, o herói ora é homem, ora mulher. Seria um hermafrodita.
Consoante Rosário Farâni Mansur Guérios, no Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes, Evaristo (Evaristus, em latim) vem de euáristos (grego), bom (eu) nobre (áristos), isto é, excelente. Uilcon estaria testando a inteligência do leitor, ao apresentar um “herói excelente” com características de bandido, de facínora, de lobo-mau? A carapuça feia de cada um de nós esconderia a bondade? Ou o Mal e o Bem seriam mesmo relativos, dependeriam dos pontos-de-vista das outras pessoas? Evaristo também pode significar “bem recebido”, se vier do grego euarestos. Neste caso, o herói uilconiano, mal recebido, mal aceito por seus semelhantes, seria um antievaristo. Ou o outro lado de Evaristo.
A raiz do nome Evaristo (eva) lembra a primeira mulher, segundo o Gênesis. Como Eva, não tem voz, não fala. A não ser no momento da tentação, quando a serpente lhe dirige algumas perguntas. A personagem do mito bíblico, criada a partir de uma costela de Adão, seria criatura de segunda mão. O homem, gerado diretamente pela mão do Criador, seria criatura de primeira mão. Evaristo não passa também de criatura de segunda mão, moldada não à imagem e semelhança de seus criadores (os entrevistados), mas segundo a ótica, a lembrança, a invencionice de cada um dos “narradores”. Seria um ser em constante mutação: nos nomes, na natureza do sexo, na aparência física, no caráter, na personalidade etc.
As diversas “narrações” e “descrições” (as respostas dadas pelos personagens inquiridos) significam, ainda, que em Nonadas há diversos narradores, isto é, diversos pontos-de-vista. Cada inquisidor e cada inquirido é um narrador. Com o emprego da técnica dos multinarradores, da multiplicidade dos pontos-de-vista, Uilcon avançou para a pós-modernidade no romance, deixando para trás os velhos processos do narrador onisciente, do único narrador na primeira pessoa, do protagonista-narrador, do único narrador-testemunha, do único narrador secundário etc.
O assunto principal dos diálogos, dos interrogatórios, dos questionários é a vida de Evaristo. Os interrogadores querem saber quem foi Evaristo, como os vigiava (seria um espião, um dedo-duro, um alcagüete da polícia?), como se disfarçava, se era cego/cega, quem o/a cegou etc.
Os interrogatórios se realizam em lugar fechado, podendo ser uma sala de tribunal, auditório, estúdio de telejornal etc. Não há nenhuma descrição de ambientes ou do ambiente onde se realizam as entrevistas ou as inquisições. Um dos inquisidores reclama: “chega de tanta literatura. isso vai cansar os queridos telespectadores” (p. 114). Outro também dá a entender estarem num auditório: “o horário do programa está errado, avança tarde da noite” (p. 92), como se se tratasse de um programa de televisão e não de uma audiência na polícia ou num tribunal. Na mesma fala ele havia dito: “não estamos selecionando as questões. precisamos destacar as mais inteligentes. não há tempo para que todas sejam formuladas. e outras vezes caímos em redundância: pergunta-se a mesma coisa aos réus e testemunhas”. E neste trecho há alguma incongruência, pois os entrevistados seriam tão-somente testemunhas, eis que o réu seria Evaristo.
Um dos inquiridos, o governador-geral da colônia chega a gritar: (...) “por favor, gente, ouvintes, meu povo, por favor, eu quero terminar, o senhor me dá licença de usar a palavra?” Há microfones, câmeras de televisão, videocassetes. Os personagens entrevistados dão a este lugar os mais diversos nomes: santo sínodo, porco tribunal, Teatro do Sonho no Espaço Infinito, pseudo-tribunal, plenário do Serviço de Censura da Superintendência Regional da Polícia Federal, centro de estudos e perspectivas de informação internacional etc.
Sempre que algum escritor apresenta novidade nas técnicas de narrar aparecem profetas para anunciarem a impossibilidade de qualquer nova invenção na arte literária, a partir daquele momento. Assim se deu quando surgiram Flaubert, Kafka, Proust, Joyce, Musil, Faulkner, o nouveau roman etc., no âmbito universal, ou Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Loyola Brandão etc., no Brasil. E surgem os anjos anunciadores do fim do romance, as teorias apocalípticas da agonia derradeira da arte de narrar.
Como escreve Eloésio Paulo no livro mencionado no início deste artigo, “o romance de Uilcon Pereira é uma obra vanguardista no melhor sentido da palavra”.E prossegue: “Escrita na era da pós-utopia, e por isso mesmo vanguarda: atualizada para um momento em que a elaboração literária não comporta mais qualquer otimismo, contentando-se com a possibilidade mais modesta do termo morusiano - a utopia é o livro, o não-lugar onde o escritor se exila do país dos boatos para retratá-lo melhor”.
Não acredito em esgotamento de linguagens, de temas, de estruturas etc. Aqui sou otimista: sempre haverá o que inventar ou reinventar. E tudo o que for inventado ou reinventado será bom. Nonadas que sejam. Porém nonadas de pura invenção.
Salvo engano, meu primeiro contato com Uilcon Pereira se deu em 1987, quando ele residia em Araraquara. Enviei-lhe exemplar de um de meus livros e imediatamente ele me mandou uma carta. Dias depois me ofertou exemplar de “re-lances do Livro de Biúte”: “preciso da sua opinião sobre os meus contemos”. Trata-se de pequeno livro, 32 páginas, fragmentos de um livro maior: “este é um trabalho em curso, ainda no canteiro de obras. Publico re-lances para sondar um pouco as reações dos leitores”, avisa na página inicial.
Antes do “re-lances”, Uilcon havia publicado “No Coração dos Boatos”, trilogia dividida em “Outra Inquisição” (1982), “Nonadas” (1983) e “A Implosão do Confessionário” (1984). Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer essa obra.
Ao longo de dez anos, Uilcon e eu mantivemos correspondência regular. Falávamos de nossos projetos e nossas realizações literárias. Não consegui ainda organizar as cartas dele, apesar de ter quase certeza de que me escrevia cerca de cinco ou seis por ano. Não faço cópia das cartas que escrevo, mas devo ter enviado a ele o mesmo número de missivas.
Uilcon não falava apenas de si mesmo. Comentava, com freqüência, os escritos dos outros, como os colaboradores da revista Literatura. E vivia prometendo colaboração. Ora “pequeno texto sobre poesia visual”, ora “8 contozinhos sob o título geral “sobre arte moderna e contemporânea””, ora “ensaio de Elisa Guimarães” (este saiu na edição n.º 8 de “Literatura” e intitula-se “À Margem da Obra de Uilcon Pereira”).
Desde o primeiro momento, impressionou-me muito a originalidade da obra ficcional de Uilcon. Ao mesmo tempo, senti-me incapaz de esposar qualquer opinião ao público. Temia dizer tolices, fazer comparações infundadas, dar rótulos desnecessários à sua obra. Nas cartas, ao contrário, eu me sentia à vontade e fazia comentários aos livros dele.
Quando li “Ruidurbano: entre/vistas” e “Ruidurbano: uma antologia” meu pasmo foi maior. Ora, então a obra intitulada “Ruidurbano” já havia sido escrita. Nas “entrevistas”, Uilcon fala a diversos “entrevistadores”. No entanto, tudo é mentira, invencionice, ficção. Uilcon nunca escreveu um livro intitulado “Ruidurbano”. Melhor dizendo, as “entrevistas” e a “antologia” são fictícias. Logo, o “entrevistado” e o autor “antologiado” são um Uilcon Pereira personagem de Uilcon Pereira. Bem escreveu Camilo Mota (“Fragmentos e refinamentos do Ruidurbano de Uilcon Pereira”): “Qualquer um que se atreva escrever sobre Uilcon Pereira corre um sério risco de se tornar um de seus insuspeitos personagens. Isto porque em sua obra ocorre uma sobreposição de realidade, não se sabendo bem onde começa a ficção, onde existe a fantasia, ou mesmo se existe um Uilcon – que se transforma a cada página através de seus personagens pré-e-pós-cibernéticos. A realidade, por sua vez, passa por um filtro que mais parece um calidoscópio verbal – e o que antes habitava ao nosso lado, repentinamente é arremessado para dentro de um romance, ou de um suposto romance, como é o caso de Ruidurbano”. Na verdade, o livro de “entrevistas” e a “antologia” são dois romances. Ou duas versões de um romance. Duas formas diferentes de um romance. Um metaromance, no dizer de Elisa Guimarães. Pois não se trata de romance na sua forma tradicional (mesmo os romances mais originais, como “Ulisses” de James Joyce, os de Oswald de Andrade, William Faulkner e do Nouveau Roman). Talvez um novo gênero literário, forma híbrida de narrativa ficcional, jornalismo, almanaque, crítica literária, crônica de costumes, humor, deboche... Enfim, romance de romance, meta-romance.
A leitura dos livros de Uilcon me abalou tanto que passei a me ver como um velho escritor, um narrador ultrapassado. Senti-me no século XX, um pequeno contista-romancista do final do século XX. Quase tive vergonha de mim mesmo. E prometi mudar. Não sei se consegui mudar, buscar novas formas de escrever, de inventar. Pus-me a imaginar, a fazer rabiscos, anotações e cheguei a escrever um livro, uma série de pequenas narrativas cujos personagens principais são reis, generais, heróis, santos. Um desses contos é “O Gato Preto de Darwin”, que Uilcon chamou de “obrinha-priminha”. E comentou: “foi integrada, já, ao meu pacote de minis perfeições que vou utilizando nos meus cursos sobre as possibilidades do minimal em ficção (virará livro de ensaio, no futuro)”. Uma das preocupações constantes dele era exatamente isso: a síntese (“única saída para os ventos do verbo, hoje e amanhã” - afirmava). Falei da influência dele em minhas obras mais novas. Ele, que era professor de Literatura e mestre na arte de ler e escrever, não parece ter levado a sério a informação que lhe dei. Talvez não acreditasse na possibilidade de me tornar seu discípulo, seu imitador. Também não acredito nisso. Porque continuo um escritor do século que finda. Ele, Uilcon Pereira, é um escritor do século XXI, do futuro, o criador de uma nova literatura.
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