As peças ficcionais de Ana Carolina da Costa e Fonseca em Sei Que Ele Me Ama, Pois Me Disse Uma Vez (Editora Bestiário, Porto Alegre, RS, 2004) podem ser vistas como contos de personagens. São eles o centro de tudo, independentemente do que fazem, de suas ações. Seres voltados para si mesmos, como se o mundo de fora não existisse. Assim, não se “vêem” ambientes, a arquitetura de casas, prédios, ruas. Os personagens como que levitam longe do espaço urbano ou rural. Talvez nas nuvens. Em “Abraços” a narradora se refere a um hospital, um quarto, onde está sua tia. Mas durante todo o tempo se volta para a dor que sente. Suas ações e sensações físicas parecem traços embaciados num quadro: “saio do quarto”, “está muito quente”, “o cheiro do hospital me deixa a cada passo mais triste”, “ando sozinha”. Ressalta na história o drama psicológico do protagonista. Nem mesmo a narradora de “Parafusos” consegue dizer duas ou três palavras sobre o seu trabalho na fábrica de parafusos, o que poderia dar à narrativa mais encanto, limitando-se a falar de si mesma, abandonada pelo marido, solitária. Assim, se trabalhasse numa padaria, numa lavanderia ou em outro tipo de indústria ou comércio, nada mudaria no conto. O significado do parafuso ou a sua metáfora poderia ser apresentada com mais pompa.
Seja como for, a contista quis deixar de lado a ação e o espaço para privilegiar o conflito psicológico. Assim, mesmo nos contos com narrador onisciente, como “Velhos”, o drama interior dos seres é o mais importante.
Muitas das histórias de Ana são narradas por personagens, femininos ou masculinos. Alguns são bem delineados, outros se escondem do leitor. A protagonista do primeiro conto é uma mulher, talvez jovem. Nada além disto consegue o leitor saber. “Chocolate”, um dos melhores do livro, tem como narrador um homem “de mais de 40 anos”, “pai de família” que tinha de trabalhar, pagar as contas, dizer bom dia para a esposa. História estranha e de rara profundidade psicológica. Esse homem, pai de uma menina de 11 anos, sente-se atraído pelas brincadeiras da filha e de outra menina. Como se quisesse ser criança de novo. “Eu era muito grande para ficar em pé na casa de bonecas”. No entanto, a narrativa não se completaria ou não se formaria se a contista não eliminasse a filha, num acidente, deixando o homem abatido por dias e dias. E a mãe da menina? Estranhamente não aparece em nenhum momento. Quem reaparece é a outra menina, para dar à história o toque final: “Coloquei minha mão sob seu vestido, sem levantá-lo, e toquei-lhe suavemente. Senti-me leve”. Talvez um toque de erotismo.
Em outros contos o personagem principal é visto pelo narrador ou observador como um ser estranho, esquisito. Em “Entre Livros” a protagonista é descrita ao longo da narrativa: vive entre livros, anda de sebo em sebo, entrega-se a homens nas velhas livrarias. Entretanto, pouco lhe importam os sebos e os homens. A personagem vive o seu drama interior e dele não se afasta: “Em lugar algum do mundo exterior as palavras parecem tão bem escolhidas e pronunciadas como em seu mundo interior”.
Outra característica das histórias de Ana é a não identificação dos personagens por nomes, o que pode resultar em confusão do leitor. Assim, não fosse o “ando sozinha”, no final do primeiro conto, e o leitor não saberia sequer o sexo da narradora. Mas isto tem importância?
Vale-se Ana ora da narração, ora do monólogo interior. Talvez nem haja narração, porque o protagonista fala sempre para si mesmo. Quando o narrador onisciente conta fatos o faz como se estivesse a espionar os passos e gestos do outro. E isto se reflete na ausência quase que absoluta de diálogos, embora a linguagem oral seja a mais freqüente nas narrativas. Talvez o diálogo se veja somente em “Chocolate”, em que o narrador transcreve algumas falas dele e da menina. Nas outras peças os personagens parece não se comunicarem entre si. O narrador de “Amor no feminino” afirma: “Fiz-lhe uma promessa sem palavras”. Isto é, os personagens nem sequer pronunciam palavras. Apenas agem e pensam.
Este o livro de estréia de Ana Carolina da Costa e Fonseca. Se é obra literária de alto nível ou se não passa de mais um conjunto de contos sem qualidade, que o digam os críticos. Os leitores talvez o leiam com curiosidade e espanto.
Fortaleza, outubro de 2004.
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