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quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Outros contistas (Nilto Maciel)


Torpalium, de Júlio César Martins, é composto de pequenos flashes da cidade grande. Os personagens são estes com quem esbarramos a cada passo: meninos famintos, homens e mulheres carregados de medos, frustrações, misérias, loucos de todos os gêneros, prostitutas, ladrões, marginais enfim.

Às vezes o puramente real assemelha-se ao fantástico. Como em “Caso de Fome”. Contos como “Caso de Polícia”, “Na Esquina da Prefeitura” e "Feriado Nacional” são casos que acontecem continuamente. Não estão nos jornais, a não ser em outra situação. Porque, como diz a canção, “a dor da gente não sai no jornal”.

Raízes da Morte é obra de muito trabalho, muito talento. As preocupações de Murilo Carvalho são outras, menos imediatas que as de Júlio César. Tem outra visão. Uma visão mais angustiada da vida, mesmo sendo seus personagens gente das pequenas cidades e do campo. Um realismo intimista, que deixa no leitor uma sensação de aniquilamento. Contudo, as tramas não se afastam do cotidiano e os personagens não se debatem em angústias puramente metafísicas.

São apenas seis contos, todos de uma dramaticidade amarga, quase tocando a epiderme da loucura. Ou do absurdo, como no magnífico “Os Cupins, Como Uma Cachoeira”. Enfim, um livro encantatório ou patético, até quando coloca o homem não poluído diante da ameaça da poluição, como em “Raízes da Morte”. São todos contos de excelente feitura, ao contrário da maioria dos livros de contos. Para resumir – um dos melhores livros de contos brasileiros dos anos 1970.

O Banquete, de Silviano Santiago, talvez não seja um livro de contos. Por isso deve ser lido como um conjunto. Livro para ser compreendido como um livro. Não porque os primeiros quatro contos tenham a estrutura tradicional da narrativa curta e outros só cheguem a ser contos por terem personagens. Podemos chamá-lo, pois, de livro programado, intencional, em oposição a livro de inspiração. Este tipo de livro pode, sim, trazer uma só temática, uma mesma linguagem, um só ambiente. Como se fosse um romance.

Para o leitor menos lido só serão bons contos os quatro primeiros do livro. Os demais serão meros exercícios verbais. Um livro vanguardista. Um livro escrito por um homem de idéias e nunca por um ficcionista. Por um Sartre, nunca por um Jorge Amado.

Hermann José Reipert, também maduro nas letras e nas idéias, fez contos em Hora Inclinada. Contos com sabor também amargo, embora seja, sobretudo um romancista. Às vezes alcança o essencialmente social, como em “Passagem Para Dois”, tão lúgubre quanto alguns contos de Júlio César. É, porém, no drama interior dos personagens no qual mais Reipert penetra, chegando ao patético puramente real, com singularidade, como em “O Elefante”, “Ronda”, “Zoca”, “Um Homem e Uma Mulher” e outros. Sem dúvida, outro livro de contos de sabor magnífico.

Em Caminhos do Vento, de Dionisio Pereira Machado, a linguagem está mais apurada em relação aos seus livros anteriores. Essa apuração atinge os limites do artificialismo, parecendo uma procura desesperada de vocábulos para a construção das frases. Como aqui: “No beiço branco, broncos barcos brocados espiam as clinas cristalizadas do monstro”.

Em alguns textos, Dionisio conseguiu, no entanto, proezas dignas de nossa melhor literatura, como em “O Filatelista”, talvez o melhor conto do livro. Na grande maioria, entretanto, comete as mesmas barbaridades dos primeiros livros.

Verifica-se, ainda, uma heterogeneidade na temática enfocada. Assim, ao lado dos contos essencialmente regionalistas, à moda de Bernardo Élis e Guimarães Rosa, nos quais se realiza, criando tipos, ambientes, situações, há narrativas de temáticas diversas. Ora, o fantástico pode estar no regionalismo e este naquele. São minoria, porém, os contos regionalistas em Caminhos do Vento. Em Dionisio o fantástico ou, melhor dizendo, o metafórico se delineia na própria linguagem. Quase sempre o discurso se estende e se baralha. Outros contos percorrem a trilha da denúncia social. Neles o contista goiano consegue melhores momentos do que nos textos ditos metafóricos, apesar de não ir além da moda.

Estação das Manobras, de Magalhães da Costa, traz 15 histórias curtas, algumas até curtíssimas, em que o mundo do homem do sertão é recontado com a linguagem mais sertaneja possível, sobretudo nos diálogos. Aliás, o contista prima no uso do diálogo.

Assim como outro piauiense ilustre, Fontes Ibiapina, o autor desta obra não é apenas um contador de histórias. Sabe ele tratar a matéria-prima de sua fabulação com o humor característico do nordestino. São consequência disso algumas anedotas e histórias picarescas.

O escritor tem compromissos com os valores culturais de sua terra. Sobretudo quando se dá a desfiguração da língua, dos costumes, das peculiaridades. A preservação da língua portuguesa, enriquecida e abrasileirada com a contribuição indígena e africana, é também incumbência do escritor brasileiro. Para Fábio Freixeiro, não é bem-vindo o uso de “arcaísmos típicos do conservadorismo interiorano”. Ora, está em jogo nossa identidade cultural. O vocabulário e a sintaxe ingleses nos são impingidos pela mídia. E Magalhães da Costa é um desses escritores voltados para a defesa intransigente da língua portuguesa.

Reunidos num volume, os contos de Os Sinos e O Tombadilho, de Renard Perez, mostram um mundo antigo, de internatos, “naviozinhos ordinários”, circos. Um mundo reconstruído pela memória. Mas o mundo é amplo e não é feito apenas de paisagens mortas relembradas por fotografias. É também feito de realidades mais abrangentes. A literatura de Renard Perez é elástica – vai do espaço existencial da criança que descobre o substituto do pai até o campo de batalha onde se desenrola uma revolução fracassada. Não há reduzido ou ilimitado espaço. A dimensão de um momento ou de um personagem depende única e exclusivamente da ótica do escritor. E Renard Perez vê e mostra em sua ficção pedaços de um espaço sem limites – o homem.

Esfinges, de Francisco Maciel Silveira, é literatura agradável, bonita e moderna, sem ser difícil. Pelas epígrafes se vê onde o contista fez o seu aprendizado, embora, muitas vezes, as obras repletas de epígrafes não passem de meros atestados de soberbia. Há unidade temática no livro, cujo título não nasceu por acaso, mas pelo “uso e fruto” de uma clara visão do mundo, conturbado mundo repleno de obscuridades – esfinges nunca decifradas.

Os contos de Francisco de Britto, reunidos em Massapê, são histórias do sertão goiano, simples casos, escritos numa linguagem fácil, do agrado do leitor mais exigente. O contista é regionalista e tradicionalista.

Terra II- Astronave do Sonho, de Eduardo Jordão, é ficção ou sonho. Ficção científica de quem sonha muito. Alguns textos não chegam a ser histórias. Poderíamos vislumbrar aqui e ali uns laivos de regionalismo. Tudo muito sutil. Ou de orientalismo em mundos fantásticos de viagens espaciotemporais. Loucura da civilização ocidental cristã. Tudo, porém, nascido do lúdico, desse lúdico em que os realistas-fantásticos vão sorver proezas mentais.
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