Ninguém jamais compreenderá a América, sem antes compreender o significado do extermínio dos índios. Mais ainda a América amazônica. E é para retirar deste limbo a história da Amazônia que Márcio Souza, em A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo, desce às profundas do passado para emergir à superfície da Manaus da Zona Franca. Tal baldeamento – essa descida ao fundo do poço – é um imperativo, para que a verdade histórica não permaneça enlameada e obscura. Porque só interessa aos que se arrepiam diante dos fantasmas pretéritos essa escamoteação da verdade e, sobretudo, a subdivisão da História em departamentos estanques. Mas, como se a consciência lhes roesse as entranhas, esses guerreiros de papel, como para querer sanar todos os cancros do passado, um dia descobriram que a remissão da terra estava numa operação de transplante – e implantaram em plena selva um aparelho cardíaco artificial, a chamada Zona Franca. Mas os males do passado não se curam com novas extravagâncias pueris. “A capital amazonense se transforma rapidamente num apêndice infectado, centro perfeito para a velha luta entre glóbulos brancos e glóbulos vermelhos. Na escatologia médica isto tem um nome: leucemia. O choque de brancos e vermelhos encaminha-se para o extermínio dos últimos. A simbologia é clara: a vitória dos brancos é a morte do organismo" (pág. 34). A origem dos males está na distância entre as duas raízes humanas, separadas por um mar até o séc. XVI tão imenso para uns e para sempre um enigma para os outros – de um lado uma religião codificada, uma Roma cesariana, uma idade de bruxas e fogueiras, e de outra um panteísmo primitivo, uma selva chuvosa, uma era de mitos que beiravam a primeira infância da raça. “Por isso, o contato jamais seria pacífico e uma coexistência bem sucedida se tornaria impraticável em terras amazônicas" (pág. 54).
E o que é a sociedade brasileira de hoje, mesmo aqueles setores mais distanciados do consumismo, mas em vias de desaparecerem como tais (a Zona Franca é uma cunha consumista no seio da selva amazônica), senão uma sub-raça já mais “branca” do que “vermelha”? O processo de extermínio do aborígine sempre caminhou paralelamente ao espírito escravista e mercantilista do colonizador europeu. O arcabuz foi se transformando ao longo do tempo em mensagem publicitária, quando não permaneceu materializado em fuzil-metralhadora. A fortaleza da Barra de São José se transmudou em uma Manaus conduzida à era da Zona Franca do consumo. "Firmemente sustentados pelo ideal do avanço econômico, não fazemos mais do que seguir a tradição espoliadora. Pomos abaixo a maior floresta do planeta, sem ao menos conhecermos as conseqüências desse gesto, para alimentarmos a voracidade das grandes empresas monopolistas" (pág. 30). A multinacional de hoje é um desenvolvimento do reinado europeu, o português no nosso caso. O capitalista e seus asseclas são a continuidade econômico-social do conquistador bandeirante. O caboclo de hoje, operário, camponês ou subempregado, é o herdeiro histórico do índio expulso da terra, escravizado ou dizimado. O índio protegido de hoje é apenas uma caricatura ou uma amostra degenerada do selvagem do passado, como os animais dos zoológicos. Esta é a visão global não só do Brasil, mas de todas as terras conquistadas pelos europeus. Mas A Expressão Amazonense é um livro ideologicamente mais amplo do que o que nele está estritamente enunciado, porque "a luta pela Amazônia está no processo geral de libertação dos povos oprimidos" (pág. 39). Apesar disso, Márcio Souza pretende mesmo é um estudo da amazonidade ao longo de sua expressão no tempo, a partir de seu atrelamento à locomotiva da civilização ocidental.
Passamos então a um outro aspecto do livro – que denominaremos de a seringa, embora não corresponda à segunda parte o livro – “o período do imperialismo". Tocamos assim o período em que a Amazônia aparece nos anais da história como o novo Eldorado, só que agora da seringa para onde acorriam aventureiros de todos os quadrantes, até do Nordeste, se se puder denominar de aventura a "ida" à Amazônia de levas e levas de retirantes da seca. Miseráveis que fugiam de um deserto para irem se refugiar nos labirintos de uma selva só antes habitada por tribos tão antigas quanto a humanidade. E se escravizar mais uma vez nas dívidas e se tomar simplesmente "vegetal do extrativismo". É a belle époque de uma Manaus engalanada de palacetes e cintilante de bordéis luxuosos, onde os seringalistas (“o patrão, o dono e senhor absoluto de seus domínios, um misto de senhor de engenho e aventureiro vitoriano”) iam gozar as delicias de suas esposas resguardadas e o perfume das esposas francesas, ao compasso da polca, do maxixe e do cancã; enquanto o seringueiro se degradava na selva, aonde “a contrapartida feminina (só) chegava sob a forma degradante da prostituição" e o sexo resvalava quase sempre para o onanismo, a bestialidade e o homossexualismo.
Mas a Amazônia parecia fadada a um apogeu de segundos. No furor da orgia, eis que as luzes se apagam. São apagadas pelos britânicos, que resolveram plantar a hévea roubada nos cafundós da Ásia. Estava quebrado o monopólio amazônico da seringa – e “os que não puderam fugir, ficaram a falar sozinhos durante cinqüenta anos”. (pág. 102)
E onde estiveram os artistas no decorrer de tantos malabarismos histórico-sociais? O primeiro desses “iluminados” foi o soldado português Henrique João Wilkens, autor do medíocre “hino genocida” intitulado "A muhraida". Mas “o primeiro artista do Amazonas” é Tenreiro Aranha, que “fez o teatro da moderação, o drama pastoril da decadência do mercantilismo e da falência do poder português no Brasil” (pág. 78). E o que significou este primeiro poeta amazonense? Significou o começo do fim de uma era – a da rebelião contra o colonialismo, como em “Ajuricaba”; a da luta por uma Amazônia indígena, como em 1713 a Confederação os Cariris tentou restaurar o antigo domínio indígena no Nordeste, especificamente no Ceará, expulsando ou dizimando os invasores estrangeiros – os portugueses e seus descendentes brasileiros. Era esta que chegaria definitivamente ao fim após a, talvez, maior guerra de libertação nacional que o Brasil já conheceu, no dizer do autor, levada a efeito por índios e mestiços em 1835 contra os mercenários alemães e ingleses – a revolução da Cabanagem. Tenreiro Aranha foi o espelho fiel do amazonense adaptado ao colonialismo. Durante o "ciclo da borracha", o marasmo seria quase total, não fossem um Raimundo Monteiro, um Silvino Santos e um Ferreira de Castro, que conseguiu realizar esta façanha de, numa época de fôlego curto, escrever um romance, sobretudo um grande romance – A Selva. Os outros não passaram de sonetistas de sarau, cegos ao mundo miserável que rodeava aquelas ilhas de luxo e prazer dos seringalistas. Tudo isto – a começar pelo extermínio os nativos – não passou de um ensaio geral, como por determinismo histórico, para que a Amazônia fosse adaptada aos anseios do capitalismo moderno. A última lição foi pedagogicamente elaborada pelo “porta-voz do lumpesinato burguês", o Deputado Pereira da Silva, que em 1957 elaborou o projeto de lei que criaria a Zona Franca. Manaus transformou-se então, como tantas outras cidades brasileiras assaltadas pela ideologia do consumo e do bom viver norte-americano, propagada pela televisão, num imenso parque de estacionamento, "para atender a promenade motorizada", no centro, e num amontoado de favelas, a que os urbanistas chamam de bairros ou conjuntos habitacionais, nas periferias.
E onde estiveram os artistas do período anterior à criação da Zona Franca e onde estão os do Novíssimo Amazonas? Aqueles foram os do chamado "Clube da Madrugada", surgido na década iniciada em 1950, que sucederam os literatos do realismo crítico, que por sua vez vieram deixar para trás Lourenço Amazonas, autor do primeiro romance amazônico, o Sima, indianista e precursor de Alencar, assim como o romance naturalista-realista, antes, e o romance regionalista nordestino, depois, sucederam o romantismo indianista de Alencar e Gonçalves Dias. É um ciclo natural, podemos dizer. Márcio Souza traça um painel crítico da produção literária na região em páginas maravilhosas de interpretação da literatura da "expressão amazonense", sem deixar de desenhar com tintas amargas o quadro do eterno vazio cultural da maior floresta da terra, subitamente invadida pela televisão, antes mesmo de ter conhecido o livro. Está esboçada a história da Amazônia. Esboçada porque A Expressão Amazonense é, antes de tudo, um estudo crítico e analítico e porque mesmo a história de uma selva não comportaria em duzentas páginas. Mas o "esboço" de Márcio Souza vem redimir toda a história da Amazônia, tão “oficial”, tão “deformada” e tão "encravada na mais retrógrada e superficial tradição oficializada da historiografia brasileira", numa viagem pelos labirintos históricos que vieram dar no corredor estreito da sociedade de consumo. A verdadeira face dos heróis da mitologia ocidental – os guerreiros santos, os "descobridores" do paraíso americano, os bandeirantes, os posseiros, as multinacionais, perseguidores e dizimadores do minotauro indígena que tiveram e têm por único fim transformar o labirinto florestal em metrópoles onde só há lugar para a máquina e para a morte.
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