O primeiro livro de contos de Rinaldo de Fernandes, O Caçador, é de 1997. Meticuloso, sem pressa, em 2005 apresentou o segundo volume, O Perfume de Roberta (Rio de Janeiro, Editora Gamamond), juntando cinco daquelas narrativas a treze inéditas.
Os narradores de Rinaldo ora são protagonistas, ora meros observadores. Ou principiam como espectadores e terminam como protagonistas. De alguns o leitor conhece duas ou três características ou traços fisionômicos, físicos, socioculturais. Muitas vezes não sabe sequer o nome.
Em “Ilhado”, um homem toma uísque numa praia de uma cidade onde não mora. E pouco mais se sabe dele: (“Cheguei ontem aqui na cidade. Vim fazer uma conferência, vai ser na segunda. Estou num hotel mais adiante.”). O narrador de “O cavalo” apenas espreita, de longe, do alto, da varanda do apartamento, as cenas que constituem a peça ficcional. Quase nada diz de si mesmo: “moro aqui já tem três anos, após me aposentar como advogado”; “Dia seguinte, viajei para o Rio de Janeiro, fui visitar meu neto.” Em “A morta”, o ser fictício também não se exibe com clareza, porque não passa de testemunha dos fatos. O protagonista de “Oferta” apenas se diz “velho vendedor” e revela ter 48 anos. O de “A poeira azul” se mostra o tempo todo: “Já dez anos que eu vendo camisas!”, “já estou com trinta e quatro anos”, “já fui garçom”, não é casado, não tem filhos, embora não diga o próprio nome. Em “O perfume de Roberta”, cabe relatar os fatos ao pai da personagem Roberta, mera figurante na trama. Esquisito, tudo faz para se esconder, não se revelar, sobretudo porque age de madrugada, às escondidas de todos: “eu falei pra ela que me chamo Pedro”. Entretanto, não oculta outros dados importantes: “Sou funcionário da prefeitura e advogado”; “Eu sou um homem de quarenta e seis anos.” Em “Confidências de um amante quase idiota” – no outro livro, “Eu não sou um idiota” –, o protagonista nada diz de si mesmo. Roberto faz a narração de “Pássaros”. E é neste tipo de narrativa que o escritor declara ao leitor, desde o início da narrativa, quem é o vencedor do duelo final, o sobrevivente da tragédia. É como se o narrador dissesse ao leitor, desde a primeira linha: “Veja, eu vou narrar uma tragédia, da qual sou protagonista. Eu sou o vencedor do duelo final, porque sou o narrador”. O perdedor (ou a perdedora) é o outro (ou a outra), a que morreu no último ato. O vencedor, porém, é também perdedor. Talvez um perdedor menor, porque lhe restou a vida. Ora, é o narrador, mas não narra a História dos outros. Não é historiador, mas protagonista de uma narrativa.
Em “Borboleta” – outra história da coleção de estréia de Rinaldo –, o narrador é obscuro e a peça de feição rara. Também já publicado é “A tragédia prima de Sílvia Andrade”, no qual o narrador se diz escritor e relata fatos (o conto) a um delegado.
São poucas as histórias contadas por mulheres. A narradora de “O mar é bem ali” confidencia: “Sou uma velha poeta”, moradora de uma quitinete. Em “Duas margens” uma mulher narra no presente: bebe cerveja no “mais pobre dos bares”, é casada com Marcos e tem uma filha de nome Juliana. Ao mesmo tempo em que conta a própria história (o desenlace amoroso), que julga catastrófica, observa (vê e ouve) personagens de outra narrativa há muito iniciada e que em breve terá desfecho trágico.
“Rita e o cachorro” (o título – que não faz parte da narração – revela o nome da narradora) apresenta “Uma mulher vivendo só, sem emprego certo, pedindo a um e outro para fazer revisões de todo tipo de texto, teses, artigos, dissertações, o diabo.”
A narradora de “Sariema” – recriação de “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa – se desvela desde o título. Pode-se falar em clonagem literária. De um ser (composição) se extrai uma célula-tronco e dela se cria novo ser, semelhante ao original. Ou remeter ao mito bíblico da criação da mulher: de uma costela de Adão se fez Eva. Neste conto se repete o esquema do vencedor e do perdedor. Se a história é contada por Sariema e se dá o embate entre ela e Nhô Augusto, logicamente (mas poderia não ser lógico) ela é a vencedora e ele o morto.
Nas demais peças não há personagens narradores. O primeiro é “Negro”, conto reproduzido da primeira obra. Em “O último segredo”, o narrador, pode-se dizer, é semi-onisciente. “Passarinho” se assemelha àquele também neste aspecto, além de serem curtos e de tratarem de problemas sociais ou de relações sociais. Em outras composições pode-se ver a preocupação de Rinaldo com os dramas sociais, pessoais e domésticos. O narrador de “Procurando o carnaval” – também da primeira coleção – é espécie de alter ego do protagonista sem nome explícito, sua sombra.
Um dos temas predominantes em Rinaldo é a solidão. Enquanto as pessoas se debatem entre a vida e a morte, há sempre alguém (o narrador, no mais das vezes) em plena solidão, embora por alguns instantes ou momentos se envolva num turbilhão de fatos alheios à sua vontade ou expectativa. É o caso do narrador de “Ilhado”: tomava uísque numa barraca de praia, certamente para espairecer, quando se viu envolvido numa tragédia. Em “O Cavalo”, o narrador é um solitário observador (“com a insônia, me levantei, fui à cozinha”). Parecida com ele é a narradora de “O mar é bem ali”: uma moradora solitária de uma quitinete, que termina imaginando um diálogo com um suposto visitante. Em solidão também está o protagonista de “Oferta”, assim como os demais personagens, que mal conseguem se comunicar. A solidão da protagonista de “Duas margens” se mistura à angústia de ter sido traída no amor. A narradora está só, bebe cerveja num bar, enquanto outra mulher desesperada se debate também na solidão, após ter sido abandonada pelo marido.
Algumas obras de Rinaldo têm desfecho trágico. A carnificina em “Ilhado” vai num crescendo. O leitor nem percebe a lenta transformação do lirismo dos namorados à beira-mar em tragédia. A tragédia de “A morta” se dá de forma inesperada, porque nenhum conflito se manifesta no decorrer na narração, a não ser de forma sutil: “Não tem ninguém aí, não é possível!” (os três visitantes acreditavam encontrar o casal à sua espera); “E, quase que ao mesmo tempo, algo tombou na estrada. Não sei se tombo ou o tropeço de alguém.” Em “Duas margens” a morte da criança é algo escabroso. A mãe enterra o filho vivo, com a ajuda da narradora, que acreditou na afirmação da outra: “– Ele está morto”. Na última tragédia, Sariema, mulher de Osório, esfaqueia Nhô Augusto, após este matar aquele.
O mar é uma constante nas peças ficcionais de Rinaldo. Não exatamente o mar. Na verdade, não se vêem pescadores, banhistas ou surfistas. O mar é muito mais referência de ambiente, às vezes pano-de-fundo (“O mar espuma, adiante, nos arrecifes.”), mas sempre presente. Toda a tragédia de “Ilhado” se inicia à beira-mar e termina em pleno mar, num barco. Em “O mar é bem ali”, o próprio título diz tudo. Na verdade, a trama se dá num apartamento à beira-mar. A tragédia de “A morta” também não se dá no mar. Entretanto, o mar está muito presente: “A lâmina do mar apareceu lá embaixo, depois do descampado e de uma ponta de duna.” Veja-se “Oferta”, que se passa num boteco de beira de estrada no sertão. Entretanto, o narrador lembra uma propaganda de televisão em que um rapaz se aproxima de um casebre à beira-mar. O narrador olha em volta “procurando o mar”, que muito longe dele está. “Não há mar, mas uma paisagem rubra, de pedras pretas e raros arbustos, paisagem seca, de muitos gravetos.” Logo no início de “A poeira azul” se lê: “Só foi possível ver a faixa verde de mar depois da curva.” Em “Rita e o cachorro” o mar também está presente: “Ontem o mar estava todo esmeralda”.
Entretanto, nem só de paisagens marinhas vivem os personagens de Rinaldo. Alguns estão no sertão, em estradas poeirentas, outros na cidade grande, em apartamentos, ruas.
A estrutura das narrativas de O Perfume de Roberta é, quase sempre, linear no tempo. Nada de retrospectos, a não ser em elucubrações ou monólogos. Ou quando dois tempos se fundem: o presente da narração e o passado narrado, como se vê em “Sariema”. Isto é, quando o narrador está contando (presente) uma história (passado) para um ouvinte. Na maioria dos contos, o narrador conta uma história, sem se dirigir ao leitor ou a um ouvinte. Algumas obras de Rinaldo, constituídos de breves quadros, lembram roteiros de cinema. Divididos em blocos, geralmente em razão da mudança de tempo. Assim, em “Ilhado”, cortado em três segmentos, se pode ver claramente que no primeiro a cena é quase parada, com pouca movimentação dos seres: o narrador, a mulher sentada num banco, a chegada do homem num barco, a cozinheira do bar e o garçom. No segundo segmento surge o mendigo, que será o personagem central da trama. E, por último, a cena do ataque do mendigo ao narrador, à mulher e ao homem do barco. Tudo em alguns minutos.
Em outros contos, embora a ação principal se dê em poucos minutos ou horas, há referências às conseqüências dele na vida dos seres fictícios num tempo futuro, como em “O cavalo”: o narrador, numa noite, vê do alto da varanda de seu apartamento um cavalo solto na rua, a chegada de um homem num carro à casa vizinha, a briga do homem com uma mulher, etc. Tudo em poucos minutos. Após isso, refere-se ao dia seguinte e, no último parágrafo, a alguns meses depois.
A linguagem de Rinaldo é simples, próxima da oralidade, porém sem uso de gírias urbanas ou expressões regionais. A estrutura dos composições também é singela, exceto em “Borboleta”, pleno de ousadia formal. As narrações, sejam de personagens, sejam do narrador onisciente ou do escritor, não se amarram a pormenores. Os diálogos e as falas são curtos. As narrações elidem a necessidade deles. Também nada de descrições minuciosas de seres fictícios ou paisagens. Essa economia verbal dá aos contos de O Perfume de Roberta um ar de novidade, apesar da simplicidade estrutural e de linguagem. Um quê de cheiro de fruta madura.
Fortaleza, 23 de fevereiro de 2006.
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