Está nos dicionários: Cruel. Adj. 2 g. Que se compraz em fazer mal, em atormentar ou prejudicar. Duro, insensível, desumano. (Do latim crudelis ou crudele.) Crueldade. S. f. (Do lat. crudelitas –atis ou crudelitate.). Subentende-se que a crueldade seja uma qualidade humana e não de todos os seres vivos. Assim não entendo. Os animais também são cruéis, pois também são duros, insensíveis, severos, rigorosos, sobretudo no ato de matar a presa. Mas isto não importa aqui. Quero falar do livro Contos cruéis – As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organizado por Rinaldo de Fernandes e editado pela Geração Editorial, São Paulo, 2006. São 47 contos “dos anos 70 (ou mesmo um pouco antes) aos dias atuais”. O organizador adotou dois critérios básicos para fazer a seleção: “convidar nomes importantes da ficção atual (de várias regiões do país)” e “incluir alguns contos já consagrados da literatura brasileira contemporânea”.
O primeiro da lista (em ordem alfabética) é o cearense Adriano Espínola, poeta de grandes méritos e ensaísta. Sua narrativa “O Pintor da Tribo” não poderia vir no meio do livro. A história se passa há muitos anos, “muito além daquele tempo e não muito longe do mar bravio”. Veja-se a intertextualidade com a obra máxima de José de Alencar: “Verdes mares bravios de minha terra natal” (início); “Além, muito além daquela serra” (cap. II). Na sua brevidade, toca em dois pontos nevrálgicos da nossa crueldade ancestral (próxima da crueldade dos outros animais): a antropofagia e a eliminação do artista em momentos de crise na sociedade. A crueldade nascida da necessidade de sobrevivência, instintiva, e a crueldade sobre o mais fraco e inútil. O artista, para os chefes tribais (presidentes, banqueiros, latifundiários, etc), é pessoa inútil. (...) “ao invés de ir à caça com os demais, costuma passar o dia inteiro, no fundo da caverna, pintando pássaros e animais feridos, estrelas e flechas, falando sozinho e proferindo palavras incompreensíveis”. São os poetas, os pintores, os cantores, etc. Somos nós, enfim.
A crueldade humana está pintada em variadas modalidades nos contos da coletânea. No misterioso “Pela franja verde”, de Bernardo Ajzenberg, a violência sexual se volta para duas crianças. Moça de 19 anos testemunha cena em que dois homens “se esfregavam” numa menina, filha do casal que, no mesmo ambiente, pratica outra variedade de ato sexual com o filho. O conto de Carlos Ribeiro, “O segredo”, também tem como vítimas crianças, porém de outro tipo de violência. A praticada por fanáticos de seitas ditas satânicas que sacrificam crianças. A história (ou as histórias, porque são diversos os núcleos narrativos) se passa nos “espaços vazios das periferias, dos subúrbios, dos arrabaldes” de Salvador. Fernando Bonassi, com “Terrorismo” (talvez se possa chamar de “ficção política” e não de conto) apresenta espécie de manifesto de grupo fanático, em que a violência é apenas anunciada: “Aos maus será dado todo o poder para que destruam-se (sic) mutuamente”. O texto é uma seqüência de frase curtas, espécie de embrião de constituição política para ser posta em prática após a tomada do poder. O final do documento deixa o leitor em dúvida: tratam-se de macacos (animais) ou “macacos” é apenas um codinome? A peça ficcional de Marçal Aquino – “Trincheira” – é também muito original, na sua feitura. O ambiente é rural, diferentemente da maioria. A cena é curta. A crueldade é velada. Não acontece nenhum crime, nenhuma violência. A não ser nas mensagens (falas) de dois personagens: “Diga que eu mandei falar que ele é um filho da puta nojento”; “Essa velha quer é me envenenar”.
As contistas do livro – das mais veteranas às mais jovens – mostram como se deve escrever um bom conto. Tércia Montenegro nasceu em 1976, mas já tem cabedal, experiência, ganhou prêmios importantes, publicou dois livros de conto. Maria Alzira Brum Lemos (nascida em 1959) apresenta “Santinha Maria Goreti”. O ambiente é a periferia de grande cidade. A protagonista é uma menina de 12 anos. A crueldade da história pode ser vista por dois ângulos: a da pobreza, da fome, da exposição da criança aos desejos masculinos (“Seu Alessandro passa as mãos nos peitinhos de Maria Goreti por cima da camiseta”), e a do desfecho (“Maria Goreti alcança o facão de cortar salame. Seja boazinha. A lâmina afiada corta fundo o estômago do Seu Alessandro”. É a vingança final da menina.
Acho que basta, porque, se tivesse espaço para falar de cada conto do livro, escreveria outro livro, que certamente seria muito chato. Cruel até.
A seleção dos contistas é boa, embora faltem outros nomes fundamentais da literatura brasileira contemporânea, como direi adiante. Os mais veteranos são quase todos muito conhecidos. Exceção talvez seja o cearense Moreira Campos, para mim um dos melhores contistas brasileiros de todos os tempos. Seu nome é raramente lembrado fora do Ceará, o que é lamentável. Rinaldo de Fernandes, presta, portanto, homenagem ao criador de Vidas Marginais. E o tira do esquecimento. Além disso, o autor de O Perfume de Roberta montou um tapete multicolorido, ao juntar lado a lado escritores de todas as idades e nascidos nas diversas regiões do Brasil.
Aproveito para louvar outros organizadores de antologias, como Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato, Italo Moriconi, por sua visão nacional (e não local ou regional) da literatura brasileira. Porque sabem que poetas, contistas e romancistas da melhor cepa não estão apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Alguns moram em pequenas cidades, como é o caso de Dimas Carvalho, em Acaraú, Ceará. Leiam Fábulas Perversas e digam se estou dizendo tolices. Como ele, muitos outros escrevem (e publicam por pequenas editoras) contos, poemas e romances maravilhosos.
Para um segundo tomo, que Rinaldo de Fernandes poderá organizar, sugiro outros nomes fundamentais da literatura brasileira do século XX: os cearenses (puxo brasas para a minha sardinha, mas sem crueldade com os demais) Gustavo Barroso (o leitor precisa ler O Livro dos Enforcados, Praias e Várzeas, Alma Sertaneja, etc), Fran Martins (basta citar os contos “Ventania” e “Cão vadio”), Juarez Barroso (autor de contos saborosamente cruéis como “Estória de D. Nazinha e de seu Cavalo Encantado” e “Cururu”), Eduardo Campos (criador de obras-primas como “O Abutre”), o genial e louco José Alcides Pinto, Caio Porfírio Carneiro (um dos mais fecundos narradores do Brasil), Airton Monte (leiam “Manoel Lombinho” e “Cotidiano”), Carlos Emílio Corrêa Lima (um dos nossos escritores mais imaginativos), Natércia Campos (filha de Moreira Campos e também já falecida), os mineiros Manoel Lobato e Elias José, o alagoano Breno Acioli, o carioca João Antônio, o piauiense Francisco Miguel de Moura, o cearense-paranaense Holdemar Menezes e seu belo A Coleira de Peggy, os gaúchos Sérgio Faraco e Charles Kiefer, os maranhenses José Louzeiro e Nagib Jorge Neto, os catarinenses Emanuel Medeiros Vieira e Herculano Farias, o pernambucano Hermilo Borba Filho, o polonês-brasileiro Samuel Rawet, os baianos Hélio Pólvora, Jorge Medauar e Valdomiro Santana, os goianos José J. Veiga e Miguel Jorge, e tantos outros.
Para um segundo volume não podem ser esquecidos outros novos, como Dimas Carvalho, Claudio Eugenio Luz, Jorge Pieiro, Ana Carolina da Costa e Fonseca, Astolfo Lima Sandy, Ronaldo Cagiano, etc. Não citarei mais nomes porque a maioria deles está no livro.
São tantos contistas (todos escrevem contos cruéis, porque a crueldade é matéria-prima indispensável para feitura de narrativa), a literatura brasileira é tão rica, que um só volume com 47 contos é pouco. Mesmo assim, estão de parabéns Rinaldo, por sua dedicação, seu trabalho, sua pesquisa, e seu talento de escritor, o editor-escritor Luiz Fernando Emediato e os escritores que participam da coletânea. Que os leitores sintam muito prazer (apesar da crueldade dos relatos) em ler estas maravilhas do conto brasileiro contemporâneo.
Fortaleza, abril de 2006.
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