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sábado, 22 de abril de 2006

Tadeu e a mariposa (Nilto Maciel)




Agora ele deve andar metido nalgum quarto de pensão a implorar à mulher com quem se deitou a se deixar fotografar lá mesmo na cama, nua e suja como estiver. Contaram-me que vive dia e noite nas zonas, desesperadamente cantando mulheres, máquina pendurada ao ombro: “Vamos tirar umas fotos, garota?” E todas lhe fogem como o diabo foge da cruz, receosas de se tornarem mais públicas, de comprometimentos com a polícia, os bons costumes. Sua má fama já se espalhou por todos os meretrícios. Não vai para trepar e muito menos para fazer outras sacanagens. Seu fraco é fotografia erótica, coisa nojenta. De certo não abre o jogo e se faz de apaixonado: “Quero te ver de novo, sempre; deixa eu te fotografar”. Ou mente e diz que é repórter de revista de nu. “Você vai criar fama, virar manequim, estrela e ganhar muito dinheiro sem precisar abrir as pernas durante toda a noite em troca de uns cruzeirinhos”. Mas a coisa ficou preta pro seu lado, nem a mais rabugenta puta aceita sua companhia, sabedora de que é um explorador como outro qualquer, falso e mentiroso. Dizem que vive constantemente embriagado, liso, sujo, remendado, a peruar de bordel em bordel, de ruela em ruela, doido por uma cliente que não lhe saiba o nome.

Maluco na certa está, mas não é de hoje. Na verdade, no começo de nosso namoro não desconfiei de nada. Quando me visitava nos fins de semana, lembro-me que, vez por outra, abria a carteira e me mostrava retratos e mais retratos. Eram da mãe, das irmãs, das ex-namoradas. Tudo muito sério, familiar. “Me apresente sua mãe”, eu dizia, e ele mudava de assunto, fazia que não ouvia ou tirava doutro bolso mais fotos. Pelo visto, era campeão em namoros e casos. Os nomes se acumulavam e se baralhavam magistralmente: Ana, Ana Lúcia, Lúcia, Luzia, Anícia, Anízia. Uma interminável galeria de moças bonitas, feias, brancas, morenas, adolescentes, coroas. Eu tinha ciúmes e ao mesmo tempo orgulho. Afinal, ele, que conquistara tantas mulheres, era meu. Eu significava o presente e talvez o futuro, enquanto todas elas se perdiam no passado, viravam álbum de recordações. “Onde mora essa Ana Lúcia?”, eu queria saber. “Foi embora para Brasília”, conformava-me. E ria, gargalhava, chamava-me de tolinha. “E então por que guarda essa porcaria de retrato?”, eu insistia. “Besteira minha”, encerrava o assunto.

Depois de certo tempo, concluí que gostava mais de fotografia do que de dinheiro. A carteira vivia recheada, mas não de cédulas. Mania como outra qualquer. Podia ser por futebol, selo, livro. Não levei a sério a extravagância. E o ciúme foi pro beleléu. Eu me trocar por um pedaço de papel? E eram tantas e ele não demonstrava pre¬ferência por nenhuma.

Um dia apareceu com a máquina a tiracolo, risonho, carinhoso, falador, e me pediu para posar. “Foi você quem bateu todos aqueles retratos?”, lembrei-me de perguntar. Não gaguejou e disse sim. Daí em diante não teve sábado nem domingo em que não aparecesse com a câmara e eu fizesse poses no jardim, na calçada, no meio da rua, na praça.

Desde que o conheci, Tadeu trabalhava no comércio, mas eu acreditava que fosse fotógrafo. Talvez porque o vi pela primeira vez mostrando retratos a colegas num bar. Dias depois, ao entrar no mesmo bar, o vi de novo, mas desta vez em fotografia, ao lado de rapazes da vizinhança. Mais para diante, nos vidros do armário do bar, três ou quatro fotos mostravam Tadeu abraçado a amigos, copo à mão, rindo largamente, cara de boêmio. Mas não me mentia: “Sou vendedor, sim senhora.” E ria e eu ficava na dúvida.

Alugada a casa, resolvemos nos casar. “É o jeito”, dizia papai. “Quem mandou cair na conversa de vagabundo?”, concluía. E Tadeu encheu a casa de móveis comprados a prestação. Ao fim do primeiro mês, lamentou-se e chorou. Cadê dinheiro para saldar as dívidas? Eu cozinhava, lavava, varria e queria dar ajuda. Compre uma máquina de costura, suplicava. Comprou, mas a situação piorava cada vez mais.

Num meio-dia de sábado, chegou bêbado, mas alegre. Trazia um filme e disse que ia me fotografar. “A coisa preta como está e você gastando dinheiro à-toa”, foi minha primeira reação. Não me deu ouvidos, sorriu, brincou, beijou-me e fomos para a cama. Nunca o sentira tão danado, uma fúria de assustar a mais experimentada prostituta. Horas e horas naquela safadeza. De repente deixou-me e correu para a sala. Nu ainda, voltou com a câmara na cara, enquanto eu me enrolava na colcha. “Tire isso de cima de você, meu bem”, pediu. Cheia de vergonha, eu perguntava para quê? “Deixe de besteira e fique quieta.” E ia dando ordens: estire-se, encolha-se, abra as pernas, vire-se, levante os braços. Eu obedecia, resmungando, com medo. Será que ficou doido? Lembrava-me dos tempos de namoro, dos retratos das namoradas e perdia o medo. “Vou deixar, isso é cachaça. Depois destruo o filme e pronto. No final, não tive coragem de conversar. Fui tomar banho e, ao sair do banheiro, ele já estava roncando em cima da cama. Vasculhei em vão toda a casa à procura da máquina. À hora de dormir, ele despertou. Banhou-se, jantou e saiu. Fui deitar-me, mais preocupada do que nunca e adormeci. De manhã, ao acordar, assustei-me: Tadeu dormia profundamente. E assim foi todo o resto do dia. Só durante o almoço da segunda-feira pude perguntar-lhe por que me fotografara daquele jeito. Não deu resposta, trêmulo, nervoso, encabulado. “Agora não dá para conversar, estou atrasado”. E saiu às carreiras. À noite, novamente embriagado, não tocou no assunto. E, durante uma semana, esqueci até de que um dia tivesse sido fotografada.

Essa cicatriz talvez não ficasse em mim (e hoje mal passa de uma quase apagada mancha), se eu não tivesse sabido que todas aquelas fotos ele as vendeu. No princípio, não acreditei no que ele dizia e até brinquei: “Estão aí na sua carteira no lugar daquelas mocinhas”. Depois fiquei furiosa. Então eu era puta para andar nua nas mãos e nos olhos dos machos? Ele não tinha vergonha de entregar a própria mulher aos outros, fazer papel de gigolô, proxeneta? Estava novamente cheio de cana e colocava outro filme na máquina. Explicou que era a única maneira de ganharmos dinheiro. “É um trabalho honesto, como vender tecidos e costurar. Apenas mais lucrativo e mais penoso.” Lamuriou-se, passava o dia andando, conversando, adulando. Tudo para o nosso bem, nosso conforto. Em breve saldaríamos todas as dívidas e ainda teríamos dinheiro para passear, comprar roupas, comer bem. Chorei o tempo todo, enquanto ele falava. Se eu estava chorando era por poder ser confundida com rapariga, sossegasse que ele era fotógrafo fino e marido zeloso. Não ia deixar que sua mulher, logo sua mulher, se prestasse a um papel daqueles. Tomara todos os cuidados, ninguém iria saber jamais que a mulher fotografada se chamava Rosana. “Mas sou eu que estou aí feito uma rameira qualquer”, eu bradava. E para isso ele tinha também uma desculpa: em nenhum momento mirou meu rosto. “Estão aqui os negativos, veja”. Com mais cinco minutos de conversa, cedi. Vendera cada foto a cinquenta cruzeiros, comprara mais um filme e pagara a prestação da televisão. “Agora precisamos de mais dinheiro para a cama, o fogão, a geladeira, o conjunto de sala.” E foi relacionando os móveis. “Vamos ao segundo filme, minha santa”, encerrou a questão. E fui despir-me e retorcer-me em cima da cama.

Aos poucos me acostumei ao trabalho e já não sentia mais vergonha de me escangalhar diante do flash, mariposa atraída pela luz. Abria as pernas, arrebitava a bunda, dançava, pulava na cama, no chão, com o cachorro, o gato, de cócoras, como se mijasse, cagasse, me masturbasse com dedo, vela, garrafa, banana. No final, superexcitado, ele saltava sobre mim, estranho, malvado.

Chegado o tempo do sonho, porém, eu acordava suada, chorando, gritando socorro, para fugir das multidões de tarados que me cercavam em ruelas escuras, em cubículos estreitos, num mundo de fúria e dor.

Com certo tempo, Tadeu deixou o emprego na loja e se dedicou exclusivamente à fotografia. Nos últimos tempos, diariamente me fotografava e contratou dois rapazes para o trabalho de vender os retratos. Vivia esbanjando dinheiro, dizendo-se rico. Voltava para casa, tarde da noite, queixando-se de cansaço. Perdera a fúria dos primeiros tempos e eu me entregava aos monstros que me visitavam pela madrugada. O que me dava não era talvez o valor de uma foto vendida. “Tome para as compras”, dizia-me, atirando uma cédula de cem. Passávamos bem, é certo, mas pus-me a fazer contas e a acreditar-me explorada. “Onde você está botando tanto dinheiro, Tadeu?” eu queria saber. Enfurecia-se, mostrava os carnês em dia, as roupas que vestia, apontava para as panelas. “Mas não sobra nada para um passeio, um filme, um jantar fora, uma viagem?” A desculpa vinha inteligente: apesar de nunca me fotografar o rosto, seria perigoso sair comigo. Poderiam me reconhecer, pelo corpo, pela cor, pelo jeito, por andar com ele.

Não convencida, insisti, dia após dia, na vontade e necessidade de passear, divertir-me, sair da toca. Não aguentava mais aquela vidinha de esposa-modelo fotográfico. A resposta veio rápida: queixou-se, dizendo-se sem dinheiro, ninguém queria mais comprar as fotos, os fregueses exigiam agora o rosto da mulher.

Nos primeiros tempos, passamos bem, comida farta, roupa e calçados novos, televisão colorida e até carrinho, no qual eu nunca tive o prazer de sair. Tadeu vivia na rua, acordava cedo, quando não voltava bêbado e tarde para casa, almoçava em restaurante, qualquer que fosse o dia da semana. Tinha sempre na ponta da língua uma desculpa: “Vou me encontrar com um freguês, mandar revelar o filme, apanhar umas fotos.” Se eu reclamava porque ele vivia fedendo a álcool, justificava-se: para ter coragem de conversar, abordar os futuros clientes, tinha que beber. Eu chegava a me penalizar dele, sugeria que procurasse emprego, deixasse aquele negócio de lado. Então me dava dinheiro e eu comprava roupas bonitas, jóias, perfumes.

Com o passar do tempo, dinheiro que era bom eu quase nem via mais. Alegava que o mercado estava ruim, muitos concorrentes, falta de dinheiro, muita revista erótica aparecendo na praça. Se era assim, por que continuar a produzir tantas fotos? Informava que o preço baixara demasiadamente. Para quanto, não me dizia. Desconfiada, dei para segui-lo. De longe, escondida, eu o via conversando com ho¬mens, geralmente velhos, nas portas das lojas, nos bares, nas filas. Fui adquirindo o hábito de viver na rua, sozinha, andando à-toa, gastando o dinheiro que ele me dava, me pagava.

Curiosa, passei a frequentar estúdios fotográficos, pagando para ser fotografada. Claro que bem vestida, maquilada, bonita. Foi então que conheci Edmilsom. Logo estávamos conversando sobre fotografia e ele me fez a pergunta que serviu de laço para nos unir: por que eu tirava tanto retrato? Gaguejei, ele insistiu e eu fui falando de mim e de Tadeu. Quando cuidei, contava detalhes de nossa vida. Daí para a frente, tudo mudou para mim. Perdi o medo de sair de casa, de exigir explicações de Tadeu. Criei até coragem de dizer não a Tadeu quando ele me chamou para posar. Aborreceu-se porque simplesmente eu disse não, sem nenhum esclarecimento. Fiquei vendo televisão, calada, enquanto ele enchia a cara de cerveja. À certa altura, aproximou-se de mim, beijando-me, alisando-me, chamando-me de amor, benzinho, me tirando a roupa. Recusei-o e permaneci firme na decisão: não queria mais saber de fotografia. Aborreceu-se e passamos a trocar insultos. Chamou-me de cadela, mariposa, puta, o diabo. Dei o troco: Gigolô, proxeneta, veado, corno. Foi o fim. Ele saiu para comprar mais bebida e deve ter voltado e se embriagado. Ou dormido ou saído à minha procura. Nunca mais o vi, mas sempre me dizem que anda por aí, bêbado, maltrapilho, sujo, amalucado, convidando as mais decaídas prostitutas para uma pose erótica.

Corri ao estúdio de Edmilson e lá posei de todo jeito durante bom tempo. Fui além do que me ensinara Tadeu. Só faltei me partir em duas. E em seguida trepamos no chão, como um casal de doidos.

E agora vai ser aqui nesta casa que Edmilson alugou para mim. Vou me deixar lamber pelos flashs, pela luz que sai da máquina, ficar tonta, cega, doida, como a mariposa diante da lâmpada acesa. Quero ser milhões de vezes fotografada, nua, toda nua, só sexo, e ser adorada depois por todos os tarados do mundo. Nem que todos se chamem Tadeu.
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