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domingo, 2 de julho de 2006

Adeus, Alzira (Nilto Maciel)

(Alvaro Dias, autor da foto)



Cinquenta anos. Hã-hã. O pessoal brinca com isso. Quanto mais anos, mais lascado o homem. Muita vida passada. Muita água corrida debaixo da ponte. Os rios correm para o mar e se perdem nesse mundão. É a vida, a vida que se vai. A infância, a juventude, os bons anos. Muitos anos. Tempo que não acaba mais. Mas o que passou, passou. E eu vivi o quê? Metade da existência com essa jumenta. Uma égua, depois de velha. Não serve mais para nada. Faz tudo como antigamente. Só sabe abrir as pernas. No começo, um paraíso, parecia um nunca acabar de prazer, todas as noites, tudo numa paixão doida, num amor sem tamanho. Amor? Isso existiu de verdade ou foi só impressão? A gente falava de amor, amor, amor, jurava amar um ao outro para sempre, e nem notou que um dia essa palavra não valia mais nada. “Amor, você está bem? Boa-noite, amor”. Qual nada! Amor e bosta são uma coisa só. Basta puxar a descarga e vai tudo de esgoto abaixo. Agora, paixão existiu, aquele fogo danado dentro das carnes, queimando as tripas, agitando o corpo, aquele desejo animal, furioso, incontrolável. 

Da primeira noite nem me lembro mais. Bêbado que só uma cabaça, sei lá de nada. Mas ainda fui macho para fazê-la mulher. E só não fiz antes por respeito e porque ela não deixou. “Vamos esperar, amor, falta tão pouco tempo”. Ou não fui eu? Fui, sim. E se essa puta tiver me enganado? Pode ter ido antes com outro, algum namorado mais esperto, um primo qualquer. Agora é tarde para saber. Pergunto ou não? Não adianta, já faz muito tempo e ela vai dizer: “Você está achando que eu era o quê, seu cachorro?” Vamos brigar por besteira e eu nunca vou saber a verdade. Mas fui eu. De manhã eu vi o sangue, o lençol manchado, agora me lembro direitinho. Sim, até fiquei excitado só de ver aquilo. E ela encabulada, pelos cantos da casa, a mexer nas panelas, a fazer café, a lavar a louça, sem coragem de olhar para mim. Eu por ali, alegre, satisfeito, apesar da ressaca, fogoso que nem jumento de lote. Só faltava relinchar e partir para cima da eguinha. Como a meninada fazia no mato com as éguas.
Com as meninas o negócio funcionava de outra forma. Mais complicado, mais segredado, escondido. Com uma tal de Ritinha a gente fez o diabo. Começou quando fui tomar banho no rio. De longe, escutei aquela risadagem e fui me aproximando devagar. Avistei duas meninas nuas, na beira, a jogarem água uma na outra. Só podiam estar viçando. Naquela brincadeira, se encolhiam, corriam, davam gritinhos, até que pularam na água e nadaram para o meio do rio. Aí tive uma idéia: esconder as roupas delas, só de brincadeira. Não podiam me ver, senão iam enredar para minha mãe, e tome peia. Tinha que agir na surdina e saí a me arrastar feito cobra. Ao agarrar uma das trouxas, vi que voltavam para a beira e corri para detrás de u’a moita. O coração batia com força. Se me vissem, eu podia me considerar perdido. Mamãe ia me surrar até eu mijar. Mal me escondi, uma delas gritou: “Cadê minha roupa?” E passou a acusar a amiga: “Foi você quem escondeu, deixe de brincadeira, vamos, me dê logo minha roupa”. A outra ria e negava a acusação. Devia ter sido obra de algum porco ou bode. A dona das roupas desaparecidas, em tempo de cair no choro, se maldizia: e agora, como ia poder voltar para casa? Aquilo me deixava alegre. Ora, se não podia voltar, ia ficar. Além do mais, a amiguinha não tardou em apossar-se das próprias roupas e vestir-se, apressadamente, talvez com medo de ficar também na mesma situação de Ritinha. E arranjou a solução: “Fique aí, que eu vou buscar outra roupa pra você”. Assim mesmo, Ritinha não parou de chorar: “Mamãe vai me bater porque perdi minha roupa”. Já vestida, a outra saiu na carreira, prometendo voltar logo. E eu metido detrás da moita, por pouco não me acovardei e entreguei o vestido e a calcinha da coitada. Ao mesmo tempo, aquele corpinho nu me excitava e me fazia levar adiante o plano traçado desde o início da brincadeira. Deixei passar um minuto e me apresentei. “Ritinha!” Ela tomou um susto e primeiro levou as mãos ao sexo, para em seguida se acocorar e encolher-se toda. Está aqui sua roupa, menina besta, eu disse, mostrando-lhe o vestido e a calcinha.

Isso não me interessa mais, porém. Quem vive de passado é museu. E eu ainda sou homem para o que der e vier. Quando não levantar mais nem falso, aí posso até me deitar numa rede e desenterrar defunto. Agora não. Meu negócio é movimento, é viver mesmo, arranjar mulher. E nova, serelepe, fogosa, diferente dessa minha. Já estou enjoado dela. Há quanto tempo! Não dá mais. Ter que aguentar esse bagulho todo dia é fogo. Preciso primeiro tomar umas e outras, dar uma espiada nas gatinhas, imaginar sacanagens. Se não for assim, não dá.

De vez em quando, dou umas voltas por aí para ver se arranjo umas gatinhas. Cobra que não anda não engole sapo. Ficar em casa é que não dá. Assistir à novela e depois ir para a cama com essa vaca é o mesmo que morrer. E o tempo vai passando e, daqui a pouco, se eu não cuidar, adeus vidinha. Por isso, vou é sair por aí. Mas é difícil, com essa idade. Elas não querem velhos como eu, não. Gostam é dos gatões, de carro, festinhas, rebuliço, zoada, doidice. Que gosto! Não sabem o que estão perdendo. Experiência, minhas filhas. Cinqüenta anos de cama.

Ando para cima e para baixo, feito jumento sem mãe. Olho para todos os lados, becos, bares, casas, lojas, à procura de u’a mulherzinha necessitada de carinho, e nada. Cobiço cada uma que passa, desejo cada uma que anda, chega lambo os beiços, e nenhuma percebe minha ânsia. Fogem, escorregam, desaparecem, feito visagens. Quando não suporto mais, passo a mão distraidamente nas nádegas das mulheres que vão e voltam pelas ruas, viajam nos ônibus, vasculham as lojas atrás de novidades. Termino levando desaforos, cabra sem-vergonha, velho safado, tarado. Estou lá ligando para isso!

O bom é descobrir uma delas sozinha, solta, perdida na rua. Chego, me aproximo, puxo conversa, invento perguntas, onde fica a rua fulano de tal. As mais espertas desconfiam logo e escapolem. Outras ainda esperam pela cantada e fogem, como se fugissem do capeta. Vamos tomar um refrigerante? Não, obrigada. Ofereço cigarro, balinha, chicletes. Umas aceitam e dizem tchau. E o abestado fica a coçar o queixo. Já ofereci até dinheiro e as santinhas saíram com quatro pedras nas mãos. Só faltaram chamar a polícia.

Um dia desses deu certo. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Ela ia sozinha, parava aqui e acolá, olhava uma vitrine, perguntava preços, sem pressa. Percebi: está perdida no mundo, não sabe aonde vai. Entabulei conversa: não sei como essas mulheres agüentam calçar isso, e apontei para sandálias de salto alto. Sorriu, disse qualquer coisa. Acendi um cigarro, ofereci-lhe outro. Aceitou e não deixei a palavra escapulir de minha boca. Você não é dessas que gostam de se maltratar, não é? Está se vendo. Mulher bonita não precisa disso. E mandei conversa fiada e um convite para assistirmos a um filme. Topou. Comprei balinhas, entramos no cinema. Um breu de meter dedo no olho. Desci a mão para a coxa dela. Depois o convite para um motel. Não foi difícil, já devia estar esperando. Eu é que fui trouxa, de não ter percebido logo. E a bichinha tinha costume.

Depois disso, nunca mais consegui nada. Todo dia a mesma perseguição, a mesma busca, o mesmo tormento, as mesmas decepções. Todas fogem de mim. Como se eu não fosse mais homem. Desesperado, bebo, sonho, me encho de fantasias, corro para casa e lá vou eu atrás da mesma mulher, da cinqüentona, da coroa, da bicha velha, de peitos caídos, bunda mole. E o diabo é que passa semanas sem querer nada comigo. Diz que não me suporta bêbado. Ora, eu já bebo é para ter vontade e coragem. Ainda bem que a gente pode pensar. E, na hora do pega pra capar, eu imagino que ela é outra, novinha, bonitinha, durinha. Não penso nem nas artistas da televisão, que isso não é pra mim. Penso é nessas mocinhas da rua. Sei lá se são moças. Mas se fazem de santas. Dizem que não existe mais virgem. É bem capaz de ser verdade. Mas não importa. Penso nelas e me excito. E procuro a velha como se fosse uma delas. Quando termino, chega fico com nojo. E a égua nem imagina onde eu andava. Ora, sou doido é por garota nova, Dona Alzira. Ah! Se elas deixassem. Eu dava tudo.

De que adianta ficar só na imaginação? Isso é uma tortura, me mata de desejo, me deixa nervoso, doido. E a vida passando, o tempo se encurtando. Qualquer dia a morte me pega pelo pescoço e adeus vidinha boa. Adeus belas mulheres do mundo!

Mas vou é me danar. Quero lá saber de esposa, filhos, família, casa, responsabilidade! Vão tudo para o inferno. É, vou atrás das menininhas, nem que me lasque. Passar a mão e pedir desculpas. Encostar-me nos traseiros delas e me queixar da superlotação dos ônibus.

Aproveitar o resto da vida. Antes que seja tarde. Ouviu, vaca velha? Ouviu, Alzira? Adeus!
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