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domingo, 20 de agosto de 2006

A leste da morte (Francisco Carvalho)



Em dezembro de 1992, quando li a ficção de Nilto Maciel, em As Insolentes Patas do Cão, tive a inarredável convicção de que se tratava de um dos mais brilhantes expoentes da moderna literatura brasileira nos domínios do romance e do conto. As produções por ele posteriormente publicadas (Vasto Abismo, 1999, A Última Noite de Helena, 2005, e A Leste da Morte, 2006) vieram confirmar minhas expectativas acerca dos impulsos e estratégias de que se utiliza o escritor cearense na elaboração de suas narrativas.

Em trinta e dois anos de atividades literárias (1974/2006), Nilto Maciel publicou quinze livros de ficção e um de poemas. Todos esses livros tiveram excelente repercussão na comunidade dos profissionais da crítica nacional, conhecedores dos aspectos formais e dos extratos mais profundos da cosmogonia literária. De modo que as minhas modestas opiniões nada acrescentariam ao testemunho qualificado desses analistas de vasta experiência curricular.

O que me fascina no conto moderno é sua indiscutível afinidade com as linhas gerais do poema. Na ficção, especialmente no conto, a palavra como que assume conotações mais fortes do ponto de vista estritamente semântico. A linearidade prosaica cede lugar a modulações rítmicas próprias da linguagem poética, como neste passo do livro Entre os Atos, de Virgínia Woolf: “Era um pássaro diurno, / gorjeando alegre por causa da substância, / da suculência do dia, / dos vermes, dos caracóis, / dos grãos de areia. / Talvez até cantasse dormindo”. (Usei barras oblíquas para assinalar o ritmo das frases, que poderiam ser lidas como versos num hipotético poema de versos livres).

A trama das narrativas de Nilto Maciel frequentemente se expressa em linguagem poética: “Abriu a porta e o som do piano inundou o mundo. (...) Tateou espaldares de cadeiras. Tocos os dedos numa orelha. Ouviu um muxoxo feminino. (...) Conhecia a música. Talvez de Haendel. Ou seria de Grieg? (...) As mãos do artista. Não, não podiam ser mãos. (...) Sim, eram garras, jamais mãos humanas. Seriam de lobo?” Atmosfera semelhante pode ser encontrada em vários outros momentos do livro. Trata-se de um cadáver ensangüentado, “levado, às escuras, para os confins do cemitério. (...) E o enterraram numa cova aberta às pressas. A leste da morte” (p. 39). Ao escrever sobre incêndio ocorrido num espigão de cimento armado, o salto de uma pessoa para o abismo é visto deste modo pelo autor: “Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra”. Para espanto da platéia, o suposto cadáver ergueu-se do chão e saiu andando (p. 43).

Num conto em que narra as peripécias de um mágico supostamente dinamarquês, a cosmovisão do ficcionista desenha poeticamente as façanhas saídas das mãos do prestidigitador: “Uma pombinha surgia trêmula nas mãos do estrangeiro. Batia as asinhas, voava, voava e sumia no céu. Um coelhinho saltava da cartola, olhinhos vermelhos de espanto, focinho inquieto, e as primeiras mãos do povo o agarraram sangrentas” (p. 67).

“Menino Insone” (p. 76) é outra página com todas as peculiaridades de um poema. Os ritmos da narrativa parecem confundir-se com os ritmos da respiração dos personagens. Não se sabe ao certo se o menino está dormindo ou acordado sob “a luz da lamparina (que) bruxuleia”. O irmão menor do menino levanta-se da rede e perambula pela casa, como se acometido de uma crise de sonambulismo. “Permanece de olhos abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos”. É como se um fantasma, expulso dos subterrâneos de um pesadelo, vagasse por aposentos desertos à procura de reminiscências de vidas passadas em outros planetas.

Contos dessa natureza não são raros na ficção de Nilto Maciel. Levam necessariamente o leitor às raízes da chamada literatura do absurdo, na qual se destacam celebridades da estatura de Kafka e de outros mestres do gênero. “Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. (...) Na rede ao lado, o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar” (p. 77). Em “Chão Pintado de Sangue”, algumas pessoas aplaudiam ou vaiavam “um rapaz de roupas exóticas”, que declamava versos herméticos para uma platéia irreverente: “O poema é um punhal que brilhará na carne dos condescendentes. Seus reflexos parirão estrelas que habitarão o céu. Marinas cintilarão como ametistas nas bocas dos desvalidos. Imensas pérolas de enfeites da grande festa anunciada” (p. 63).

Poderia citar vários outros exemplos da riqueza semântica encontrada no contexto das narrativas de Nilto Maciel. Não o faço por estar convencido de que ao leitor deve caber o privilégio de descobri-los por si mesmo. Até porque, segundo Montaigne, certos leitores são capazes de detectar nos escritos alheios virtudes e perfeições não percebidos pelos próprios autores. Gosto sempre de repetir frase de Drummond, segundo a qual “o romance é a arte de destelhar casas sem que os transeuntes percebam”.

Nilto Maciel é, sem dúvida, um mestre consumado do conto moderno. Não apenas pelo requinte no uso de todas as gradações e alternativas morfológicas da escrita literária. Como também, e sobretudo, pela maneira engenhosa com que disserta sobre tendências e conflitos da subjetividade que navega “a leste da morte”.

Fortaleza, 3 de agosto de 2006.
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