Numa terra tradicionalmente de poetas – talvez por ser o modo mais fácil de se destacar culturalmente, num meio de poucas oportunidades, ou porque o Ceará seja mesmo um manancial de talentos poéticos, quem sabe – a ficção narrativa tem merecido pouca atenção/dedicação por quantos militam na literatura. Da velha geração, há o exemplo raro de fidelidade ao conto, acompanhado de um constante aprimoramento, por parte do Sr. Moreira Campos, mestre inconteste no gênero, reconhecido nacionalmente; o Sr. Fran Martins, novelista de primeira, ao que parece contentou-se com o seu "Dois de Ouro”, um trabalho notável, nada nos dando, porém, posteriormente, que se lhe igualasse em peso; o Sr. Jáder de Carvalho, há muito preferiu ser poeta lírico, com qualidades; e há o Sr. Eduardo Campos, que, tendo-se realizado mais plenamente na área dramática, com algu¬mas peças de merecido sucesso nacional, abandonou, ao que tudo indica, a novelística; Juarez Barroso, não fora a morte prematura, bem que nos poderia ter dado uma ficção que se ligasse à força de uma “D. Guidinha do Poço”, por exemplo. Vivência não lhe faltava, nem talento. Mas não o fez.
Na nova geração, o interesse pela narrativa literária ganha poucos adeptos. Tomando como base o Grupo Siriará, formado em 79, dos seus 24 membros, apenas 4 a 5 se empenharam na criação de personagens e enredos. O resto, tome poesia! Era, na verdade, muito mais um grupo de poetas, todos ansiosos em revelarem suas produções nascentes e serem os primeiros bardos anunciadores de um novo tempo, que se avizinhava, ao cair do obscurantismo político-cultural, que sentíamos ainda grudado nos dedos.
Se poucos foram os que se ligaram à prosa ficcional, em compensação o fizeram com uma garra e uma categoria superlativa. Como é o caso de Airton Monte, Nilto Maciel, Paulo Veras e Carlos Emílio. Trataremos, aqui, apenas, dos dois primeiros, por uma questão de espaço e afinidades. (Que esta é uma crítica impressionista).
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Nilto Maciel é outro contista vigoroso e surpreendente da nova geração. Com apenas um livro lançado, Tempos de Mula Preta (Ed. Secretaria de Cultura, Fortaleza, 1981), inscreve-se ele no que de melhor temos no momento em matéria de contos no Brasil. Percebe-se no autor um tal domínio do ficcional, uma capacidade inventiva e transfigurante da linguagem, aliada a uma não menos capacidade de alteridade, versátil e verossímil, com relação aos personagens, que o colocam entre os mais avançados e promissores contistas da atualidade. Além disso, conta ele com mais duas outras grandes qualidades, que indicam o domínio de seu ofício: uma maneira própria de dizer, de narrar, um estilo, diríamos, já “niltoniano”; e um finíssimo humour revestindo a maioria de suas criações. E o humour, lembrava Fernando Pessoa, é a marca do não provinciano; uma categoria elevada do espírito.
Tempos de Mula Preta reúne 28 contos. Os temas são os mais variados possíveis. Há desde o puramente regional (“Mistério Doloroso”), ao fantástico (“As Contas de Setidon”), passando pelo social (“Detalhes Interessantes da Vida de Umzim”), pelo indianista (“Santa Sekiki”), o moral-sexual (“A Lenta Metamorfose de Menito Bonino”) ao político (“As Pequenas Testemunhas”) e religioso (“Tempos de Mula Preta”).
Tal versatilidade confere-lhe, sem dúvida, uma marca, que, partindo da temática, projeta-se já ao nível da linguagem, ao do “plot”, ao da alteridade e, finalmente, ao nível do ponto-de-vista do narrador. É a busca da diversidade na unidade. A invenção sob os diversos ângulos da narrativa. A tentativa, em última análise, de surpreender o real em suas múltiplas facetas. Daí, diga-se logo, o fascínio, o interesse que suas estórias provocam. Em uma palavra: a comunicação. Que, ao nível do leitor (vide os pressupostos da recentíssima “Estética da Recepção”), acaba de dar significado social e estético ao fenômeno literário. Como não poderia deixar de ser.
Quanto à linguagem, Nilto Maciel nos oferece uma variedade de registros – que vai ao culto, passando pelo coloquial, o regional ao popular – tratados com uma eficiência literária admirável. O artista aqui faz a imitação, isto é, uma mimeses de linguagens, e não de natureza, como queria Aristóteles. A nomeação das coisas junta-se a uma cosmovisão própria de quem narra, recriando o autor, a partir da linguagem da personagem, o real. Sem afetações ou artificialismos que fazem, por sinal, a miséria literária de muitos escritores populistas, de um lado e, de outro, dos eruditos.
“As Sete Onças de Neo” e “Mistério Doloroso”, por exemplo, constituem duas criações superlativas, em que a língua regional é recriada com uma desenvoltura e precisão incomuns. Observe-se nesta passagem o modo de como o personagem-narrador descreve-narra a aproximação da fera:
“E lá vinham as duas tochas crescendo no meu rumo, alumiando tudo, numa macieza de deixar qualquer cristão sem fala. E quando já estavam pra me queimar, parti pra riba dela, apalpei os cós das calças mas... cadê faca? Fiz o Pelo-Sinal, me agarrei com a minha Santa Luzia pra me alumiar os olhos e lá enxerguei o pau-furado no canto da parede.” (“As Sete Onças de Neo”)
Diga-se, de passagem, que este conto, pela recriação da expressão regional, a invenção da trama, a tensão do enredo, a caracterização das situações apresentadas, mais o efeito final, com um toque de humour e surpresa, constitui indubitavelmente uma peça de mestre.
“O Bestial Carlos Bayma” é outra ficção magna de Nilto Maciel, em que a língua culta, desta feita, reveste o ato criativo. Morto Carlos Bayma, seus amigos, com base nos livros encontrados em sua casa, tecem as mais diversas, “arrepiantes” e fantásticas interpretações de sua vida sexual com os cães que criava. Tais fantasias conduzem, no final, a uma dúvida (ou àquela ambigüidade, segundo Umberto Eco, caracterizadora de toda obra de arte): teria sido efetivamente Carlos Bayma um bestial? Ou esta anormalidade estaria mais na cabeça dos seus amigos? Ou, o que é pior: a Cultura (sugerida pelo eruditismo das personagens), a literatura, seria uma forma sublimada de perversão? Pela condução da narrativa, os pormenores assinalados, a ambigüidade do texto e sugestões alcançadas, não vacilo em afirmar que estamos diante de uma das peças mais vigorosas e criativas do moderno conto brasileiro.
Poderíamos, ainda, destacar algumas outras estórias de Nilto Maciel, neste seu Tempos de Mula Preta, seja pela invenção temática, seja pela originalidade do enredo, as qualidades do estilo, a sutileza crítica, o humour, a criação; porém estas notas estão se alongando em demasia, ficando para o leitor, em melhor medida, conferir o que aqui foi dito.
Assim, Airton Monte e Nilto Maciel – pela pouca, porém significativa obra já lançada – dão-nos a certeza de que a ficção cearense tem condições de se projetar como uma das mais fortes e inventivas do Brasil (não deixo por menos), seguindo eles a tradição de um Alencar, de um Oliveira Paiva, de um Antonio Sales, de uma Rachel de Queirós ou de um Moreira Campos. Estão eles com novelas e romances prontos, como pude testemunhar. Não tenho, pois, menor receio em afirmar, também, que a nossa geração já tem os seus ficcionistas, aqui na terrinha, narradores maiores de nossos infortúnios, esperanças, sonhos, amor e luta, nas figuras destes dois jovens e talentosos escritores.
(Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, 17/10/1982)
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