Daquela noite lembro quase nada, tudo a se confundir na memória. Chego a pensar que foram muitas as noites, condensadas numa só ao longo do tempo e da angústia crescente. Às vezes ainda me digo: foi um sonho, foram muitos sonhos, misturados a lendas, histórias de trancoso, simples imaginações.
Brincávamos na sala, meus irmãos e eu, de trenzinho de caixas de fósforo, de bois e cavalos imaginários, de artista e bandidos de gibi, qualquer fantasia. E não existiam homens como nosso pai, nem mulheres como nossa mãe, e muito menos cachorros como aquele que nos apareceu de repente, patas à janela, a latir para dentro de nosso mundo.
O medo paralizou-nos e todos os brinquedos sumiram de nossos olhos, como se destruídos pela língua do diabo. Quis correr para os quartos, a cozinha, o quintal, agarrar-me às saias de minha mãe, meter-me entre as brasas do fogão, fugir pelo esgoto, ir bater nas grotas. Não movi um pé, enquanto meu irmão mais velho saltava feito um gato e agarrava as insolentes patas do cão, para empurrá-lo à calçada.
Tudo esforço inútil. Já meio corpo do bicho se debruçava na janela, a grande cabeça agitada, a boca cheia de baba, a latir dentro de casa.
O medo empurrou-me para os brinquedos e, num gesto nunca mais imitado, tomei ao bandido um facão, entreguei-o a meu irmão e ordenei que decapitasse o vira-lata.
Diante da ameaça, primeiro se escondeu a cabeça do outro lado da janela, depois as patas escorregaram, num ganido de covardia.
Corremos à janela e só vimos o pobre do cão, rabo entre as pernas, encolhido, apressado, de vez em quando a olhar para trás, perdido na escuridão da rua.
E por muito tempo nos deixamos debruçados na janela, olhos enfiados nas pedras do calçamento, esquecidos das fantasias espalhadas pela sala.
De mais nada consigo lembrar, se o trenzinho corria, se os bois mugiam, se os cavalos galopavam, se o artista e os bandidos se matavam, se nossos pais dormiam ou já haviam morrido, se o tempo passou, se fui eu que sonhei.
Só ficaram as patas do cão, garras apontadas para meus olhos.
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