Nunca mais vi o Dr. Aderaldo Ascegas. Dizem já ter morrido, de velhice, do coração, de qualquer doença. Lembro-me bem da última vez que estivemos juntos, no dia do meu julgamento. Mostrava-se muito preocupado comigo, não tanto em razão da condenação, mas sobretudo porque eu não admitia ser acusado por aquela promotora e julgado por aquele juiz. Aconselhou-me repouso e tratamento médico. Procurasse uma boa clínica psiquiátrica, com urgência. Aquilo me deixou mais nervoso ainda. Tive ímpetos de ofendê-lo fisicamente, chamá-lo de morcego, ou rato. Sim, ele me lembrava um roedor. Cheguei a ansiar matá-lo. Não precisei, no entanto, cometer o crime. Velho como era, não duraria muito. E contive-me.
Na verdade, eu andava mesmo transtornado e, à medida que se aproximava o dia do meu julgamento, mais eu me sentia nervoso. Na véspera, quase enlouqueci. Passei a noite em claro, não consegui pegar no sono sequer por um minuto. Imaginava-me condenado e desgraçado para o resto da vida. Até tarde fiquei diante da televisão, a ver filmes de violência, noticiários, shows. Nada via, no entanto, a não ser eu mesmo refletido no espelho do vídeo. Tentei outras distrações e passatempos. Coloquei discos na radiola, fumei uma infinidade de cigarros, bebi uns dois ou três conhaques e terminei lendo artigos do Código Penal.
Esses modos já se haviam tornado rotina em minha vida, há algum tempo. Depois de um dia de trabalho, corria para casa, tomava banho, jantava, ligava a televisão. E assim passava a noite, quase sempre acordado. Como seria o julgamento? Pedi mil vezes ao Dr. Aderaldo que me descrevesse minuciosamente um julgamento. Lembrava-me de filmes americanos. Aqui era diferente, dizia-me. Decidi ir ver de perto um julgamento qualquer. Pedia licença ao chefe e corria ao fórum. Nunca pedi licença nenhuma, com medo da simples palavra fórum. E o juiz, como seria? O Dr. Aderaldo não o conhecia direito. Havia sido lotado recentemente na Vara. E o promotor? Passava horas e horas a imaginar as feições de ambos. O juiz seria um velhote de óculos, careca, sério, olhar enigmático. O promotor, um senhor de bigodes grossos, carrancudo, feioso.
Cansado, sonolento, cheio de olheiras, deixei a cama na manhã do dia D como se saísse de um caixão de defuntos. A cabeça parecia enorme, pesada, disforme. Olhei-me ao espelho e me pareceu ver um monstro saído do fundo da terra. Tomei um banho demorado. A partir daí, agarrei-me ao telefone. Precisava conversar com o Dr. Aderaldo. Não se encontrava no escritório, informava a secretária. Tomei calmantes, deitei-me no sofá, ouvi música suave. Necessitava relaxar. Num minuto estava de novo ligando para o advogado. Sem sossego, ia e vinha pela casa. Chegada a hora do almoço, nada comi. Não tinha apetite, embora uma espécie de mal-estar me lembrasse pratos variados e exóticos. Imaginei jias assadas, cobras picadinhas, baratas no arroz. Saí de casa às carreiras, a fugir do almoço indigesto. Por sorte, passava um táxi livre. Direto para o escritório do Dr. Aderaldo. Achou uma loucura eu ter saído tão cedo de casa. Devia até estar trabalhando. O julgamento só começaria às 15 horas. Fosse passear, espairecer, fazer hora. Eu parecia excessivamente abatido e agitado, como se fosse ser executado. De qualquer forma, eu continuaria solto, com direito a sursis. Não me preocupasse tanto.
Li ou tentei ler jornais, revistas, códigos. As caras do juiz e do promotor teimavam em emergir das páginas, das letras, cresciam, vinham ao encontro do meu rosto. Línguas, narizes, olhos saltavam do papel para me lamber, cheirar, espiar. Apavorado, largava o impresso e me punha a andar pelo escritório, a falar e atrapalhar o trabalho do doutor.
Nem sei como cheguei ao foro. Não me lembro do percurso, de sua duração, do que conversamos. Recordo-me a caminhar pelos corredores da Justiça, atônito, sonâmbulo, cheio de medo. E, de repente, o susto. Nem sequer mais um passo consegui dar, tão profundo choque senti ao chegar à porta da sala de audiências. Sim, o palco montado e os personagens terríveis em seus lugares. O juiz, aquele cachorro, sentado ao centro da grande mesa, circunspecto, pronto a decidir o meu destino. Então eu ia ser julgado por aquele animal?! Tive ímpetos de gritar, dizer uns insultos e fugir. Porém o Dr. Aderaldo me arrastava para o interior da sala, respeitoso, solene, decidido. Eu não tirava os olhos daquele sujeito asqueroso à minha frente e então quis rir, gargalhar. Ora, um cachorro daqueles na função de juiz! Cochichei aos ouvidos do meu advogado: “Você já percebeu quem está ali?” Ele apertou-me o braço com força e retribuiu o cochicho: “Não ria, não fale nada, comporte-se”. Do contrário, eu poderia até ser preso, antes mesmo do início da audiência, por desrespeito à Justiça.
Atraído pela figura medúsica do magistrado, custei a desviar os olhos para as outras pessoas. Quando o fiz, encontrei o olhar firme de uma sujeita, sentada à esquerda do juiz. “É a promotora”, segredou-me o Dr. Aderaldo. E já não tive susto nenhum. Só vontade de rir de novo. Ora, aquilo já me parecia cômico. “Comporte-se, Felício”, sussurrou-me o advogado.
Voltei os olhos novamente para o juiz. Ele continuava muito sério em sua toga, a boca sempre aberta, feito um idiota. Olhei para a sua direita, onde um indivíduo batia à máquina. Tanto podia ser novo como velho, escondido que se achava na penumbra. Podia até ser um bicho. Porém não me preocupei com isso.
Despertei de minhas observações ao som de uma sineta. A audiência ia começar. Olhei para o juiz, Dr. Luís Bernardo Galgo (informou-me depois meu advogado), e notei sua boca cheia de saliva, parecendo baba, a língua comprida a projetar-se na minha direção, os enormes dentes caninos, as patas horríveis sobre a mesa. Eu quis rir, mas todos permaneciam muito graves. Procurei o escrivão e não o distingui na sombra. Olhei para o Dr. Aderaldo, em busca do cúmplice necessário, e desisti do riso. Dada a palavra à promotora, desviei minha atenção para ela, que também babava, tinha dentes enormes e boca animalesca. Não dava para aguentar. Aquilo merecia uma boa gargalhada. “Comporte-se, Felício”, beliscou-me o advogado, por baixo da mesa.
Durante longo tempo a cadela latiu, enquanto o escrivão datilografava, certamente os latidos da doutora Cândida Platino Canavieira. E eu com gana de gritar, para não ouvir mais tanto o latir daquela cadela metida a bonitona.
Depois falou o Dr. Aderaldo, enquanto eu não perdia um só gesto dos dois cachorros. Não, não dava para conter mais o riso. O juiz olhou para mim e latiu qualquer coisa como: “Comporte-se, Seu Felício!” Tive vontade de saltar sobre ele, rasgar-lhe o focinho com as unhas, mordê-lo, matá-lo. “Mais um miado, e mando prendê-lo” — latiu. Foi o fim de tudo.
/////