Marginal por opção, Nilto Maciel é um dos grandes nomes da prosa contemporânea, ainda que negligenciado pela mídia e ausente das prateleiras das grandes livrarias. Com 17 livros publicados, numa carreira iniciada em 1974 e contabilizando muitos prêmios em concursos literários, sua bibliografia está a merecer a atenção das grandes editoras. A leste de morte traz a marginalidade como opção. São 47 contos em um objeto-livro muito bem acabado visualmente, da recém-criada Bestiário, editora porto-alegrense que tem lançado autores de fora do mercado.
Como é praxe na prosa de Maciel, o livro tem como principal característica a diversidade. São contos realistas, surrealistas, fantásticos e históricos, nos quais transitam sem cerimônia personagens palpáveis, verossímeis ou não. Oriundo de uma geração cuja narrativa prima pela contenção e clareza, pela simplicidade da linguagem e pela secura das tramas, Maciel traz para esse livro contos curtos, nos quais predomina o senso de humor, algo muito recorrente em toda a sua obra.
Apesar do título mórbido e da capa negra, os contos pintam um cenário colorido, divertido, enxuto. E, mesmo nos textos mais densos e tensos, a contundência é amortecida pela ironia, às vezes com uma inflexão inusitada. É o que se pode ver do primeiro parágrafo do conto-título, em que nada sobra ou falta e o humor é fio condutor.
“Personagem menor de novelinha de costumes, nesta crônica quero me engrandecer. Talvez me redimir. Sou Tomé, jornalista, professor, filósofo, para alguns. Não, nada disso significa para muitos ou quase todos. Afinal, não é a mim que vou narrar. É novamente outro herói. Este, porém, não vou expor à sanha da palavra, nem à dos vilões, nem à dos leitores. Antes, quero também redimi-lo”. (p. 39)
Também é risível uma fórmula espirituosa e fluída que Maciel usa para misturar ficção e realidade. Muitos de seus contos, deste livro e dos anteriores, são ambientados em cidades cearenses, entre elas a capital Fortaleza. Para quem conhece a cidade, a visibilidade é imediata, os personagens transitam por praças, ruas etc. Por outro lado, há a fictícia Palma, onde se passam histórias inusitadas como as lendas rurais tão presentes no imaginário nordestino.
O autor transita entre história e mitologia e cria novas versões para alguns fatos. “O sonho esquecido” é iniciado com “numa grande cidade viveram, há alguns anos, Moisés, Salomão e Daniel” (p. 73) e nele são entrelaçados fatos bíblicos e uma leitura satírica desses fatos. Já em “O sétimo aniversário da Branca de Neve”, quando poderíamos esperar referências diretas e ambientações fabulosas, figuram os membros de uma família de classe média e os preparativos de uma festa de aniversário.
“O descanso do criador” é exemplar para se compreender a prosa eclética de Maciel. O título e a epígrafe (“E havendo Deus terminado no sétimo dia a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito”. Gênesis) nos remetem ao universo bíblico – e o leitor já calejado pode esperar mais uma das versões fantasiosas do autor –, mas o texto vai na contramão:
“O mágico chegou a Palma falando pouco e dizendo-se dinamarquês. Para facilitar a comunicação com os palmenses, escreveu numa folha de papel, em grandes letras, duas palavras: Egill Raunkiaer. E, rindo, apontou um dedo para o próprio peito”. (p. 66)
A biografia literária de Maciel é extensa. O ilustre desconhecido do grande público e mesmo de leitores assíduos nasceu em Baturité, Ceará, em 30 de janeiro de 1945. Cursou Direito na Universidade Federal do Ceará e chegou a advogar por um mês, mas suas atividades mais importantes sempre estiveram ligadas à literatura. Em 1976, criou, junto com outros escritores, a revista O Saco. E desde 1991 é editor da revista Literatura, que publica crítica literária (artigos, ensaios e resenhas) e literatura propriamente dita (contos e poemas) de escritores pouco conhecidos ou iniciantes. A revista está na sua 31ª edição.
Viveu em Brasília por 30 anos. Na capital federal, trabalhou na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Ganhou alguns prêmios literários: “Brasília de Literatura” (1990), na categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com o livro A última noite de Helena; “Graciliano Ramos” (1992/93), na categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os luzeiros do mundo; “Cruz e Sousa” (1996), na categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A rosa gótica; “Bolsa Brasília de Produção Literária” (1998), na categoria conto, com Pescoço de girafa na poeira; e “Eça de Queiroz” (1999), na categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com Vasto abismo.
Entre os livros publicados estão os de contos Itinerário (edição do autor, 1974) e Tempos de mula preta (Secretaria da Cultura do Ceará, 1981); o romance Estaca zero (Edicon, 1987); e o de poemas Navegador (Editora Códice, 1996). Organizou, ao lado de Glauco Mattoso, Queda de braço: uma antologia do conto marginal (Clube dos Amigos do Marsaninho, Rio de Janeiro e Fortaleza, 1977). Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O cabra que virou bode inspirou filme nas mãos do cineasta Clébio Ribeiro, em 1993.
Vastas são a obra e a vocação para autor periférico, já que se encontra à margem do hegemônico eixo cultural Rio-São Paulo. Na prosa de Maciel, que vive atualmente em Fortaleza, até as incisões verborrágicas deixam de soar como petulantes mostras da erudição do autor para compor um universo bem peculiar na literatura, o da diversidade em um único livro. A reunião desses contos é prova da rebeldia e ousadia do baturiteense: não há facilidades nem para quem pretende resenhar o livro. Talvez não haja, no mercado “dominante”, atrativos suficientes para afastar Maciel do gosto pela marginalidade.
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