Ao terminar a leitura do primeiro capítulo de A Guerra da Donzela, de Nilto Maciel, confesso que não resisti à tentação de voltar às páginas de Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. É que a semelhança dos relatos ficcionais desses dois escritores em torno da apreensão da gente de uma pequena cidade nos parecia tão propositalmente tecida, que em determinado momento da leitura nos assaltou a sensação de que em verdade estávamos diante de uma narrativa do grande romancista colombiano, Nobel de Literatura de 1982.
Porém o incrível mesmo aconteceu ao transpormos a última página do livro de Nilto Maciel, oportunidade em que constatamos as dessemelhanças existentes entre a temática destas duas novelas, que de comum entre si ostentam apenas um mesmo pano de fundo e uma mesma vertente de enunciados visceralmente presa, às mais arraigadas tradições culturais da prosa de ficção latino-americana, no que ela possui de mais expressivo.
Entretanto, ressalte-se, a obra ficcional de Nilto Maciel em nenhum momento se deixa influenciar pelas idéias de Garcia Márquez, mesmo, porque a novela-reportagem do cearense e a crônica do novelista colombiano vieram a público, quase que simultaneamente. Entre ambas o que existem são pontos coincidentes, uma vez que se comunicam entre si pelo sentido de criatividade e autenticidade e pela aura de expectativa que as reveste.
Neste artigo não nos interessa estudar a novela de Nilto Maciel como um todo, como narrativa linear, com começo, meio e fim. Não. O que nos compete examinar são aspectos isolados do seu discurso narrativo, tão expressivo quanto o impacto que determinadas passagens da sua textualidade nos vêm comunicar, pelo que exibe de realidade e magia, sem nunca ter que cair na vala comum da maioria dos trabalhos de ficção que a inquietude literária brasileira e sul-americana nos quis oferecer.
Pois bem: a novela de Nilto Maciel em verdade nos transmite algo de novo, é mesmo uma novela diferente, ainda tendo que questionar uma problemática regional. Seu cenário centra-se no cerne de um micro-universo potencialmente rico em elementos ficcionais. Palma, a cidadezinha que Nilto Maciel escolheu para centralizar a sua trama, situa-se nas proximidades da serra de Baturité e à relativa distância das margens do rio Pacoti, no Estado do Ceará.
O espaço é quase o mesmo utilizado para a fixação dos seus contos enfeixados em Tempos de Mula Preta, seu segundo livro de estórias curtas, o qual, por imposição das próprias exigências estéticas, quando da sua publicação, nos vinha revelar as múltiplas possibilidades literárias do seu autor e confirmar a existência de um contista plenamente consciente da utilização dos recursos que a nova escritura literária oferece.
O pretenso rapto de uma donzela deixa em polvorosa, toda a população de uma pequena cidade, e deste episódio Nilto Maciel tira proveitos e conclusões, redimensiona cenários, metamorfoseia seres, satiriza pessoas, ironiza autoridades e termina por restabelecer e efervescer situações, tradições, comportamentos e atitudes a que estão irremediavelmente presos os habitantes das pequenas comunidades perdidas na hinterlândia nordestina. De toda essa situação, repito, sabe Nilto Maciel auferir vantagens e perquirir imagens e sugestões que pacientemente trabalha no intuito de legar-nos um discurso com uma nova orientação estética. Em A Guerra da Donzela o que Nilto Maciel busca é a transformação da palavra, é uma nova dimensão para a obra de arte, procurando, assim, conduzir-nos a uma melhor captação dos preconceitos e exigências de um universo plural no qual nos inserimos.
Em A Guerra da Donzela Nilto Maciel nos comunica um texto pleno de realizações e de metáforas, de símbolos visuais e de significados. Uma literatura densa de expressividade e de qualidades formais. Uma produção que dimensiona o universal pelo regional, que revitaliza os elementos estruturais da ficção e que pereniza os valores cômicos e caricaturescos da criação literária.
A apreensão em torno do rapto, a honra ultrajada reivindicando publicamente o resgate da inocência, a pregação ostensiva da necessidade de guerra, arregimentação das hostes libertárias, a união das forças civis e religiosas em torno de uma mesma cruzada, a declaração aberta de guerra ao raptor e sua desventurada donzela, tudo isso, repito, são situações que por si sós atestam a existência de uma ação textual de excelente nível temático.
A Guerra da Donzela é uma guerra picaresca e inconsequente, ilusória e quixotesca, absurda e simplória, porém revestida da maior solenidade. Ao lado da moral blasfemada se perfilam as autoridades constituídas e o senso de austeridade que as reveste; o conservadorismo burguês e o tradicionalismo familiar afogado no sentimento de religiosidade. Nas suas hostes se posicionam o delegado, o padre, o prefeito, o farmacêutico e demais tipos populares facilmente encontrados numa cidade do interior cearense. O juiz, que representa a justiça, nada labora, porque apenas sabe derramar "café na xícara e latim na mesa" e matutar em torno do enquadramento legal do rapto. O Dr. Augusto encarna a justiça e a justiça não age senão depois de provocada: Daí ser o juiz a autoridade que menos se movimenta no povoado de Palma, uma vez que está atrelado a letra da lei e a lei em si mesma é inerte e inconseqüente. Até no linguajar do papagaio esta situação de inoperância é denunciada. Com a expressão "nullo Augusto”, embora se valha da deturpação do latim para traduzir o que vai no seu pensamento, o que Nilto Maciel quer revelar mesmo é o estado de nulidade que grassa nos corredores da justiça, embora utilize esse recurso de forma absolutamente inconsciente.
Do lado oposto, contrário às falanges libertárias, tomam lugar a jovem raptada e o seu raptor, que no conceito do povo não passa de "um celerado”, de "um inimigo público da moral", mas que em si encarna a aventura, a quebra de tabus, o desacato, a provocação e um salvo conduto à liberdade sexual reprimida. O rapto se propõe como uma ruptura drástica no sei do tradicionalismo, como uma ofensa aos valores e/ou padrões culturais normalmente aceitos como norma de conduta em qualquer nível de sociedade. Por isso, qualquer guerra que se lhe mova será infrutífera, pois do seu lado estão o gigante Gorjala, o cururuzão, o porcão preto, o ovão do tamanho de uma jaca, que pode provocar catástrofes imprevisíveis, e mais toda uma sorte de outros monstros e de situações vexatórias, contra quem nem mesmo o sentimento de religiosidade explorado pelo autor seria capaz de combater.
Aliás, diga-se de passagem, é contra toda essa estrutura ultrapassada que luta Nilto Maciel, que procura, acima de tudo, valorizar o moderno, embora esteja consciente que as suas estórias não deixam de ser um documento autêntico desse mundo fantástico. Os substratos fáticos de sua novela Nilto Maciel pesquisa da memória popular, do inconsciente coletivo, das estórias de trancoso e encanto que um dia viu relatadas à sua curiosidade.
No primeiro capítulo de A Guerra da Donzela é intensa a movimentação da trama, o que vem apresentar maior expressividade aos cenários. Aí, a expectativa em que vive o pequeno lugarejo de Palma é que constitui o motivo primordial da narrativa. Á notícia do rapto de uma donzela faz toda uma cidade acordar alarmada. A novidade se dissemina como uma peste no meio da população, "cada vez mais alarmante e misteriosa", subindo e descendo ruas como a Maria Rosa, como se fosse realmente um furacão. A boa nova tem seu ponto de partida no cabaré da Ana Souto e daí se propaga para a igreja matriz, se alastra até a estação ferroviária, atinge o cemitério e, posteriormente, a casa paroquial, alcança a residência de João Alencar, se infiltra entre os ginasianos do Colégio dos Padres, chega ao conhecimento das autoridades, inquieta e edilidade municipal e, por fim, vai enjaular-se no recinto da Pharmácia Brazil. E por aí grassa como uma tempestade tangida pelas borrascas humanas, porque, afinal de contas, “quem, todavia, poderá conter as palavras?”
Em A Guerra da Donzela, Nilto Maciel demonstra conhecer todos os segredos e implicações da técnica de narrar. A sua novela é toda ela repassada por um sopro mágico e inovador. Seu discurso guarda, em suas linhas mestras, o impacto sofrido por determinados padrões culturais num momento aparentemente recente da nossa formação social e a sua linguagem nos transmite qualquer coisa de moderno e inusitado. A Guerra da Donzela apresenta em sua tessitura consideráveis qualidades formais. Sua textualidade é rica de sutilezas estilísticas e de expressões regionais, sem pretender o seu autor ser um escritor regionalista. Seu universo semântico, em verdade, é pouco expressivo, porém as imagens geradas na consciência do leitor, em função de determinados aspectos da sua escritura, é mesmo algo que realmente surpreende, bastando para tanto que se medite em torno do infinito de sugestões que o próprio título da novela oferece.
Tudo isso, porém, são procedimentos de que lança mão Nilto Maciel sem precisar recorrer a outras fontes de pesquisa, são reflexos da sua maturidade intelectual e das suas virtualidades de escritor afeito às exigências que o funcionamento da oficina verbal nos impõe. Por exemplo, quando a vanguarda libertária atinge a estação ferroviária, e o Padre Queiroz, seguido pelos demais, começa a entoar hinos sacro-guerreiros, o que se dá aí é a dramaticidade do discurso. Aí Nilto Maciel teatraliza a ação, porque o cenário exige que assim se proceda.
Nilto Maciel é um escritor plenamente consciente da linguagem que utiliza, das palavras e expressões que emprega no seu discurso. Assim, não é sem razão que o sacristão da igreja de Palma se chama Joaquim, cujo nome soa “como uma palavra sem fim”. Porém isso não se deve simplesmente aos efeitos acústicos das palavras quando pronunciadas em recintos fechados, como no caso a parte interna da igreja de Palma, mas igualmente aos efeitos fonéticos que aludido vocábulo enfeixa em seu significado. Por outro lado, o homem que infelicitou a vida de Mirtes é procedente de uma família importante, de “gente valente, metida na política e na igreja”. Política e igreja, no texto, funcionam como componentes de opressão e dominação. A política encarna o Estado, que tudo pode e que sobre todos impera. A igreja representa o clero, que até bem pouco tempo procurava difundir no meio do povo a necessidade de obediência à retórica do autoritarismo, principalmente entre as populações rurais desassistidas.
Porém a novela de Nilto Maciel oferece outras perspectivas de análise. Uma destas é a ironia. Pois bem: quando ironiza as suas personagens, o que o autor pretende ironizar mesmo são os padrões socioculturais ou o complexo de valores morais que elas representam. Assim, é que quando nos relata João Alencar escalando uma laranjeira, o que ele nos quer demonstrar realmente é um painel do homem revoltado e, por conseguinte, dominado irracionalmente pelos seus instintos animalescos. Mas vocês argumentariam: João Alencar é simplesmente um humilde sapateiro de Palma, um homem sem maiores aspirações sociais, portanto, passível de ser reduzido até mesmo ao plano do irracionalismo, daí não cabendo a colocação. E eu lhes responderia: entre as falanges guerreiras João Alencar perde a sua identidade profissional e adquire a personalidade de uma figura legendária, de um ente cívico. Ele transforma-se em sustentáculo da justiça, em pedestal dos valores comunitários. Noutra feita, quando Thaumaturgo escorrega pelo tronco de uma mangueira e cai escanchado no dorso de um porco, para depois esparramar-se na lama, ele representa, neste exato momento, o ridículo pelo qual se deixa abater a maioria dos políticos. Diante desse quadro de idiotices e misérias humanas, pois, é que os urubus riem da presença do soldado Arruda buscando a donzela violada e seu violador entre os monturos de lixo localizados nas proximidades do cemitério.
E o discurso assim posto, com intenções deliberadas à exaltação do irônico, é verdade que termina por conduzir as personagens da novela de Nilto Maciel para o plano do absurdo. Senão, vejamos este significativo texto que abre o sexto capítulo de A Guerra da Donzela: “andavam ao léu, perdidos dos caminhos, farejavam restos de virgem violada e rastros de violador desalmado. Catavam frutas podres, corriam atrás das próprias sombras, atiravam em visagens. Já não sabiam para onde seguiam nem onde se achavam. Pareciam um magote de bichos misteriosos. Thaumaturgo já não comandava, seu rifle nas mãos de Franco. Tenente Bezerra, de farda surrada, recebia ordens de Jacó, de Honorato, de Lima e de Arruda. O sacristão dava gritos no Padre Queiroz. Sombra era uma figura apagada, sem eloquência. Todos mandavam e ninguém obedecia”. Tudo isso é o realismo mágico da vida, o absurdo existencial. É a desordem se sobrepondo à ordem, é o caos gerando no comportamento do homem as bases do conflito que nos quis legar a dialética.
Além de A Guerra da Donzela e Tempos de Mula Preta, Nilto Maciel publicou ainda Itinerário, em 1974, o que se constitui no seu livro de estreia. Especialmente como contista, há participado de várias antologias regionais e nacionais. Em 1975, criou a revista “Intercâmbio” e, em 1976, seria um dos principais articuladores de “O Saco”, revista cultural amplamente conhecida, inclusive no exterior. Nilto Maciel tem poemas, contos e resenhas críticas publicadas nas principais revistas e suplementos literários do país, tais como “Ficção”, “Escrita”, “Arsenal”, sem precisão de citar outros nomes. Em A Guerra da Donzela Nilto Maciel se revela realmente um novelista admirável e individualíssimo. Nas sondagens que realiza pelos difíceis caminhos da ficção demonstra ser portador de uma capacidade extraordinária de penetração. A prosa de ficção de Nilto Maciel nada deixa a desejar ao que de melhor no gênero se produz atualmente no Brasil.
(Leitura e Conjuntura, págs. 53/60, Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, Fortaleza, 1984, e 2ª ed. UFC, Fortaleza, 1995, págs. 45/51)
/////