Palma é uma cidadezinha cearense, fictícia, encravada nas dobras da Serra do Baturité. Cenário criado por Nilto Maciel para livre trânsito de seus personagens. Esse lugarejo é o protótipo da maioria das cidades que salpicam nossos sertões. Com seus problemas, seu folclore, seus esquemas de dominação e principalmente com seu poder arregimentador brotado do senso de cooperação existente no inconsciente coletivo. Neste clima, Nilto Maciel apresenta o pretenso rapto de uma donzela. A partir desse momento começam a acontecer episódios que vão do real ao fantástico.
Com uma linguagem objetiva e marcada geralmente pela referencialidade, esse novo livro de Nilto Maciel apresenta motivos que o diferem do seu anterior Tempos de Mula Preta. O contista do primeiro livro se nos apresenta agora como novelista. Sim, porque esse seu A Guerra da Donzela tem todos os caracteres do gênero novela. São setenta páginas bem trabalhadas pela Editora Mercado Aberto, com bonita capa de Marco Cena e uma perfeita análise crítica inicial do professor José Lemos Monteiro.
No prefácio, o ensaísta Lemos Monteiro, quando se refere aos momentos fantásticos da narrativa, sugere a necessidade de teorias psicanalíticas para a explicação do fenômeno de surgimento de um gigante Gorjala, de um ovão, de um cururuzão e de outros monstros similares. Pode-se, no entanto, partir também para explicações sociológicas ou atribuídas ao sincretismo religioso. A presença do coronel latifundiário de um lado, e dos Jesuítas com sua religião contra-reformista e inquisitorial do outro, marcou gerações e gerações de nossa gente. É por isso que todos os comportamentos humanos apresentados pelos habitantes de Palma são identificados pela dicotomia bem e mal. Esse fenômeno é mais significativo nos momentos limítrofes entre o real e o fantástico. No momento em que o esquadrão perseguidor e justiceiro penetra na caverna símbolo da justiça terrena, os monstros do mal se apresentam como demônios dinossauros contra os pecados humanos. Há também a mitologia indígena presente em tudo o que é primitivo. A coluna entradista e devastadora esbarra no mito aborígene. Cada árvore é um índio. É o primitivo se armando, se crispando contra os invasores palmenses. Aí o verdadeiro passa a contracenar com o fantástico ou o fictício, nesse feito de guerra. É a ânsia de mitos, de heróis e de semideuses existente em cada indivíduo e propagada muito mais acentuadamente na coletividade.
Em termos de linguagem, como já foi dito, há uma centralização em torno do contexto, do referente. É uma linguagem sem muitos atrativos. Prova disso é que há poucas figuras de relevo, inclusive citadas pelo prefaciador, e nada mais. Acontece que essa linguagem simples é uma característica da novela. O que importa é o cultivo do episódio, do anedótico, do aventuresco, do anestésico, mesmo em detrimento de uma verticalidade semântica.
Quanto à estrutura, o que se observa é que nessa novela há uma pluralidade dramática. Há dois níveis de narrativa perfeitamente identificáveis. O nível inicial de abertura, que também ressurge no fechamento e gira em torno dos personagens Mirtes, Thaumaturgo e Antônio, e o nível central, mais dilatado, onde se estabelecem as principais características novelescas, em torno do episódio de perseguição ao raptor da donzela. A par desse recurso, pode-se observar que o autor usa de uma técnica cinematográfica que vai da distribuição linear dos episódios até a frase curta e descritiva, característica dos enredos de telenovelas. É tanto que cada capítulo tem seu final imprevisível e aberto, o que provoca no leitor aquela ânsia para prosseguir no desvendar de lances sugeridos pelo autor. E em mil capítulos poderia se prolongar esta narrativa pois o que importa em novela é a ação. E é essa ação a característica principal dessa história em terceira pessoa, objetiva, e linear. Não há um tratamento individual da psicologia do personagem, porque em novela, via de regra, esse aspecto emana do comportamento geral dos personagens, ou, quando muito, do conjunto de todos os comportamentos de um personagem em relevo. É uma dedução do leitor perspicaz e não uma preocupação do autor em traçar perfis.
São muitos os personagens em A Guerra da Donzela. E além de muitos, são personagens bidimensionais, já que a narrativa oscila entre o jocoso e o patético, o real e o fantástico. Essa oscilação é produto dos esquemas repressivos em que se funda a formação dos palmenses e da maioria das populações abandonadas dos nossos sertões. Os guerreiros de Palma nunca irão destruir o raptor da donzela, porque ele está nas suas próprias mentes. O que importa é a busca do objetivo inacessível, a cima da própria condição humana. É o mito de Sísifo no seu momento mais significativo. O momento da reflexão. O momento em que a pedra rola sozinha de ladeira abaixo e onde se estabelece o sonho do novo projetar. Como empurrá-la de novo de ladeira acima? Esse questionamento, os palmenses vão estabelecendo nos intervalos de luta, na mente do leitor. É a própria condição do nordestino na sua epopéia do resistir. O cultivar uma terra que a seca virá destruir é constituir-se numa epopéia que os guerreiros de Palma transpuseram para o plano místico enquanto a chuva não vinha.
(Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 23/1/1983)
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