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sábado, 9 de dezembro de 2006

Os varões de Palma (Foed Castro Chamma)




Nilto Maciel (...) retoma o discurso de um tempo mítico que perdura na esfera da realidade e é produção do pensamento, num estágio em que se convencionou chamar de sonho a imaginação. Ali a imagem é uma metáfora que se amplia até transformar-se em mito, em realidade literária, cujo domínio pertence à linguagem enquanto duplo da linguagem hegeliana, linguagem do simbólico, da negação do real, da afirmação portanto do ser enquanto identidade e diferença. 

Tal contradição preside o ato de existir como rebeldia da luz que se volta contra o real, o raio, na acepção do Lógos, o Daimonion de Sócrates, que tornava o filósofo diferente em face de seu magistério. Nesta medida a fábula de Nilto Maciel é a negação transformada no mito que se confunde com a história em plena vigência temporal da realidade.

A crônica do homem em todos os tempos, desde as epopéias sumerianas às viagens espaciais, é o relato mítico de uma realidade a envolver o indivíduo como um rapto e da qual se dá conta o poeta, rebelado contra o Lógos, o assinalado, que denuncia a Pessoa como metáfora e reconhece a mão que escreve.

O tempo mítico em Os Varões de Palma é a essência consagrada em escritos de todos os tempos (essencial sacred writings from around the world, cf. Mircea Eliade), aos quais juntam-se novos escritos numa descoberta constante, reveladora do indivíduo recoberto pelo próprio mito e projetado em arquétipos que o camuflam como a astrologia da Caldeia ou o antropomorfismo da mitologia grega. A obstinada busca de imortalidade de Gilgamesh em sua Epopéia revela ao rei a vitória do espírito sobre a matéria.

Da Renascença ao “pós-moderno” perdura o mergulho no universo subjetivo do ser enquanto negação do real, onde a ciência esbarra ao submeter-se à crítica da Semanálise, ao reconhecimento de registros que remontam a Lao tse quando a matematização do simbólico se exercia com linguagem poética na esfera da representação.

O delineamento do imaginário amplia-se com o tempo mítico quando a produção do pensamento atinge a claridade da imagem, a realidade temporal da história como um duplo. Estamos em Os Varões de Palma diante do fenômeno literário que absorveu Põe, saturado da eletricidade animal e do assalto aos sentidos com a ruptura do tempo que configura por outro lado a ficção de Murilo Rubião, e Nilto Maciel resolve de modo picaresco no melhor sentido ibérico da novela cervantina.

A dimensão mítica do poema, do conto, do romance, onde a história e a ficção se confundem, da mesma maneira como a vida se confunde com o sonho, a dimensão épica do poema traz de volta o discurso do simbólico num rasgo que Mikhail Bakhtine vê como a menipéia do Satiricon de Petrônio. É como um poema o toque malsão que induz a ver na poldra a beleza animal que seduz e encanta o homem dividido entre a devoção e a libertinagem do grupo que acompanha o animal pelos arredores da cidade. Aí está uma denúncia à hipocrisia que mascara o lado terroso em luta contra o espírito. Uma égua semelhante ao bezerro de ouro de Arão, enfeitada, sedutora, passeia entre a cidade e o campo. A mesma égua talvez do Canto Primeiro de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, que reza assim “a garupa da vaca era palustre e bela”, e o poeta diviniza ao tocar “o leite e a suavidade a manar de dois seios”.

A trama organiza-se de modo a parodiar a realidade, a qual tem na metáfora o seu núcleo, tal o ser que se desdobra e volta-se para si como espelho do real em sua transformação. O realismo dessa fábula dá continuidade ao imaginário, para lá do real, onde perpassa o vôo do pensamento. A história transforma-se na abordagem do fenômeno que percorre a imaginação fundindo mito e linguagem, tempo e realidade. A visão é a de um onirismo que assalta o leitor e é colocado em pauta por Nilto Maciel de modo a identificar-se com o Asno de Ouro, de Apuleio, a visão identificada com o universo que Põe abordou inaugurando o simbolismo europeu.

O imaginário projeta-se na figura da égua, dividindo o mítico e o temporal, o simbólico e a razão acauteladora, a qual subtrai a Pessoa sem frear todavia o húmus que dá sustentação ao espírito no rapto amoroso. A metamorfose é uma metáfora a encobrir o limite do não-ser, implicando em uma demonologia que o homem encarna como abismo e descoberta de si no entusiasmo e beleza de sua transfiguração. O aniversário de D. Perpétua e a aparição da égua configuram a passagem do racional ao mítico, em cuja esfera se desenrola por fim a transformação de criaturas sujeitas aos poderes da razão ardente que dá ao indivíduo a faculdade de produzir o mito, quer no sentido teológico de essencias consagradas, quer no sentido bakhtiniano de carnavalização que preside o “pós-moderno” e a busca delirante de codificação do mito em face da Modernidade.

O fetichismo que vigorou com mais intensidade na Idade Média e assumiu a proporção coletiva de uma esquizofrenia, não estava muito distante do imaginário detectado em todos os tempos em manchas ou sinais que são núcleos obscuros da representação e o artista pinça, ampliando desta maneira a imagem que se desdobra do real na dualidade do simbólico fundando a estrutura mítica do ser. Abolir o mito é negar o abismo que precede o fundamento do ser. O mudo estado da imaginação tem nas artes a configuração apriorística do Conhecimento.

(Revista Literatura n.º 9, Brasília, junho de 1994)
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