Em seu romance Os Varões de Palma, publicado pela editora Códice em 1994, Nilto Maciel prima, como em suas demais obras de ficção, pelo estilo objetivo, alcançado graças à contenção formal, pela qual o autor demonstra pleno domínio dos métodos de articulação da trama. Obra escrita sem opacidades de expressão, mas com liberdade criativa e linguagem fluida peculiares ao discurso da ficção hodierna, Os Varões de Palma foi urdido num encadeamento lógico e cronológico que, não obstante, tem compromissos apenas parciais com a verossimilhança. A própria intenção caricatural da caracterização dos personagens já conduz a narrativa para o plano mítico.
Embora o enredo tenha como referencial objetivo a vida urbana do povoado de Jenipapo, ou a cidade de Palma, esta situação temática regionalizante é apenas um afluente da dimensão de universalidade do manancial onde a fábula bebe a sua substância: a ignorância espiritual do homem da província reflete a estupidez de toda pessoa que, para imergir no Aqueronte das ilusões, paixões, fantasias e incoerências, se expõe ao extremo ridículo retratado nessa alegoria, cujo protótipo é a sociedade palmense. A crítica dos valores forjados pela mentalidade tacanha e torpe da nação jenipapo mostra as limitações da visão e da compreensão de toda a sociedade humana e denuncia, em tom sarcástico, o nível de evolução própria da humanidade.
O aspecto histórico da colonização de Palma a caracteriza como vítima, durante alguns séculos, de dominação e alienação, que redundaram na ingenuidade e na estupidez de seus habitantes, que, levadas ao extremo resultam num autêntico delírio apocalíptico. O autor soube, com argúcia, lançar mão desta vicissitude para constituir sua sátira.
De fato, ademais das notáveis qualidades estruturais da obra, com primorosa técnica de organização na reconstituição das situações e uso impecável do instrumental lingüístico, o que mais nos preenche da expectativa de satisfação estética na leitura do texto é a caracterização dos personagens, suas reações bizarras, estapafúrdias ante a visão da égua, pintada de urucu e jenipapo e enfeitada com penas de arara. É louvável a riqueza inventiva das tipificações no ambiente da trama. Seus gestos, atitudes e dizeres configuram uma gama de nuances culturais e condicionamentos mentais. Por exemplo, um dos núcleos de motivação narrativa são as peripécias de Jacinto Jenipapo e seus cupinchas, que adornaram de tal modo a poldra que sua beleza causava admiração e sedução aos habitantes de Palma. A indignação de Madame Castro Pinto, grã-fina da sociedade local, cuja festa de aniversário fora ofuscada pela aparição da égua amarrada ao pé do Cruzeiro. As paixões e os preconceitos de teor pseudo-místico, fundamentalistas e dogmáticos manifestados pelos representantes de cada grupo religioso, que resultaram em tremendas intrigas. Como a revolta do pároco Inácio, que considera aquela iniquidade similar à adoração do bezerro de ouro de Arão. Também a acusação de bruxarias contra o espírita Jerônimo, pelos líderes de outras crenças, após o seu discurso pronunciado ao pé do Cruzeiro, onde se achava a égua. Os porta-vozes da verdade, à medievalesca, brandiam, uns contra os outros, seus vitupérios (abestados! pecadores! demônios! beatos!). O pandemônio gerado pelas duas fugas da potra, entre relinchos, coices e pinotes, e as perseguições, forjadas através de regimentos militares, por parte dos coronéis perfilados, a mostrar sua bravura contra aquele pobre animal, transformado em totem de um povo insano e insensato, adepto do bestialismo. Outras situações esdrúxulas, como a confusão causada pelos sabonetes de Gonçalo, as espertezas do gringo Oliver, com seu inglês bíblico, e a imbecilidade geral dos “caçadores” da égua, persuadidos de que tudo poderia tratar-se de uma metamorfose por feitiçaria. Temiam que o bruxo pudesse transformar em animais todos os habitantes de Palma. Mas, apesar dos temores, cada um escolhera o animal em que gostaria de ser metamorfoseado. Enfim, toda essa caótica situação, provocada pelos desejos de vingança do velho Jacinto e pelos absurdos da mentalidade retrógrada e cretina dos palmenses, é narrada, com perspicácia, pela pena ferina de um discípulo de João Brígido. Este, a exemplo de seu mestre, exímio humorista, sobretudo na já destacada riqueza psico-caricatural dos personagens, de características tão exóticas quanto aqueles das fabulações de Gabriel Garcia Márquez.
Quanto à urdidura e à tessitura da narrativa, já louvei-lhe a espontaneidade, a síntese formal pela eficiente supressão de acessórios supérfluos e a ausência de malabarismos de sintaxe. Resta concordar em gênero, número e grau com a opinião de F. S. Nascimento, segundo o qual Nilto Maciel detém o “conhecimento metódico da sintaxe literária e a noção de ritmo e cromatismo sonoro”, o que comprova a consistência expressiva da obra e o domínio da prosa de ficção pelo autor de Os Varões de Palma.
(Revista Literatura n.º 11, Brasília, dezembro de 1996)
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