A excelente apresentação de João Carlos Taveira sobre Vasto Abismo, conjunto de novelas de Nilto Maciel, não deixa margem para resenhas ou considerações de natureza periférica acerca dos valores essenciais das narrativas de que se compõe o mencionado livro. JCT analisa, com profundidade, o que acontece no plano submerso das narrativas de Nilto Maciel, de seus labirintos verbais, essa mistura engenhosa do erudito e do popular, os seus constantes apelos às vertentes da mitologia, da metafísica e do picaresco, além de outros fatores não menos significativos que interferem na construção da linguagem do autor.
Importante assinalar essa capacidade de Nilto Maciel para criar realidades virtuais a partir dos materiais da ficção. Materiais que se encontram disponíveis na memória do narrador, ou nos subterrâneos do inconsciente coletivo, depositados no limo do id. Porque a ficção de Nilto Maciel é uma síntese de todas essas coisas, um périplo minucioso pelas zonas mais sombrias dos atavismos que emergem dos veios da linguagem e da própria condição humana. Seu discurso literário é o triunfo da expressividade sobre as estruturas lineares do idioma. O leito de um rio que deságua no “vasto abismo” da insignificância do homem.
“Vivo também o passado. É pouco viver só o presente. O homem é poço onde se mira, enquanto mira”. Só um poeta tocado pela magia do verbo profético poderia escrever essas palavras, impregnadas de premonição e viés filosófico. JCT tem razão quando compara Nilto Maciel a Graciliano Ramos e Machado de Assis. Pela maneira sutil de sondar os abismos da alma humana, talvez esteja mais próximo deste do que daquele. O autor de Vasto Abismo, à maneira do bruxo do Cosme Velho, também se entrega à busca sem trégua da paixão, à garimpagem das águas mais profundas, na tentativa de explicar o destino trágico do homem, esse bicho da terra tão cretino.
Nada do que é humano é estranho às percepções de Nilto Maciel. As sete novelas desse novo livro, todas elas centradas na inconstância e volubilidade da natureza humana, revelam a preocupação do ficcionista na busca da identidade moral de seus personagens. E mostram, ainda, o empenho do autor para explicar os impulsos com que as pessoas reagem às flutuações dialéticas da história, por força dos quais se transformam muitas vezes em joguetes nas mãos de lideranças inescrupulosas, quando não sucumbem às armadilhas de suas próprias emoções. A escritura do ficcionista cearense é extraordinariamente dotada de recursos os mais expressivos. Uma linguagem que privilegia o que existe de mais universal nos mananciais do idioma.
Na novela "Taciba Vai ao Céu", pode-se ler este discurso, um primor de vagueza, de ironia, de intenções lúdicas: “Como vocês podem ver, se é que me podem ver, meu mundo não é deste reino. Desculpem o trocadilho, a brincadeira. Mas, em verdade, eu vos nego: cada macaco em seu galho. Explico-me: a terra é de todos e tanto faz estar lá como aqui”. Alguns dos recursos estilísticos e semânticos presentes no texto acima referido lembram certas passagens dos desvarios retóricos do Cavaleiro da Triste Figura, nos famosos diálogos com o seu fiel escudeiro, o não menos tresloucado Sancho Pança. Dom Quixote declamava coisas assim: “A razão da sem-razão que à minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queixo de vossa formosura”.
A leitura das novelas de Nilto Maciel me proporcionou novas percepções e novos motivos para acreditar que a poesia entranhada na literatura de ficção entrará no terceiro milênio com o mesmo poder de encantamento e de sedução.
(Revista Literatura n.º 16, Brasília, junho de 1999, e no livro Rascunhos & Resenhas, UFC, Fortaleza, 2001, págs. 222/224)
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