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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

A noturnidade de Nilto Maciel (Batista de Lima)



A leitura de A última noite de Helena, de Nilto Maciel, necessita de outras leituras complementares para seu melhor entendimento. Uma delas é de seu livro anterior, A guerra da donzela, onde ocorre o pretenso rapto da heroína, nos moldes do que ocorre com Helena, na Ilíada, de Homero. Nesta última novela ocorre a morte de Helena, e todo o enredo se desenvolve através do desvendamento do crime.
Polifemo, de Homero; Adamastor, de Camões; e Gorjala, de Nilto Maciel, são gigantes, são monstros que povoam as epopéias e as literaturas fantásticas. Em A guerra da donzela aparece um cururuzão. Em A última noite de Helena, Arquimedes, o doido da cidade, é conhecido como Cururu. Aliás, nos dois livros, a cidade é Palma, uma espécie de Tróia sertaneja encravada nos contrafortes da Serra do Baturité.

Neste seu último livro os personagens têm nomes gregos e alguns da epopéia homérica: Helena, a professora; Agenor, o delegado; Alceu, o pintor; Diógenes, o vigário; Catarina, a zeladora; Lisandro, o professor; Timóteo, o sacristão; Enedina, a mulher do sacristão; Homero, filosofando e contando histórias, o fantasiador; Filipe, o soldado; Arquimedes, o louco; Diana, a filha do tabelião; Crisóstomo, o tabelião; o Café Progresso, a ágora ateniense, onde tudo se discute; Berenice; Agapito; Horácio; Juvenil; Juvenal; Dirce; e Leda, sempre com os olhos enfiados nas pernas dos homens.

Há uma gruta em A guerra da donzela, que reaparece também em A última noite de Helena, simbolizando a subjetividade, a noturnidade profunda do devaneio fantasioso. Afinal, Palma é marcada pela pasmaceira, e só passa a existir no mapa a partir desse crime misterioso ali ocorrido. A população, no seu não fazer nada, só tinha o Café Progresso para mexericos, pois Homero passava a vida lendo romances e falando tolices. O tabelião mal chefiava seu escritório. O sacristão só faltava lamber a batina do apóstolo. Catarina nunca deixaria de ser ovelha. Lisandro nem com a reforma completa do mundo chegaria a chefe, e por passar a vida lendo é que Homero tinha o poder de fantasiar as histórias que passavam de boca em boca. A tradição oral cria seus heróis, seus mitos. A oralidade é sábia.

A professora Helena fora morar no Beco do Labirinto, nome sugestivo para o aconchego de um personagem cuja saga é um mistério. É por isso que o leitor cria, através da leitura, seus próprios desfechos, o que não coincide com o final fechado, mas imprevisível dado pelo autor. Apenas na última página está a chave do mistério.

A gruta do Sítio Tijuca – e que não é única na obra completa de Nilto Maciel – é a porta de entrada para a sua noturnidade literária. É a partir dela que se instaura sua mais profunda metáfora. Afinal não se sabe aonde vão dar os caminhos de uma gruta. Eles colocam o leitor à deriva. Fazem com que cada um procure elaborar seu destino, sua porta de saída, que é uma porta de chegada. O leitor passa a ser dono do seu próprio destino, a construir sua própria saga a partir da porta aberta sugerida por Nilto Maciel. A escritura niltoniana é uma sugestão e uma passagem para um estágio de estranhos aconteceres. Daí a conclusão do leitor, de que, após esse novo incidente em Palma, outros surgirão. Afinal, a literatura de Nilto Maciel é uma permanente construção em que cada minuto da existência é mais um compartimento que se ergue. Viver é construir, e Nilto Maciel, na sua arte literária, é um construtor de infinitas noturnidades.

(Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 12.10.2003 e 21.3.2004; revista Literatura nº 29, maio/agosto/2005)
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