Nilto Maciel, um autor que não se desprega de suas raízes, entrega-nos o seu último livro (romance), Os Luzeiros do Mundo (Códice, Fortaleza, 2005), com expressiva capa de Ronaldo de Castro Cruz. O título é um achado soberbo.
O menino nasceu em Baturité, onde passou a infância. Guarda o passado na memória. A região está por inteiro dentro de seus romances, novelas, contos, e até nas poesias.
Embora pouco conhecido como poeta, sendo um grande poeta, sim, e até na prosa essa aparece vigorosa, marca que é dos grandes escritores de todas as épocas.
Alguns de seus livros de contos são famosos, dos seus romances também. Versátil, eclético, polêmico, criativo, dono de um potencial narrativo impressionante, pouco comum entre os de sua geração. Seus escritos se fundamentam no fantástico e no realismo mágico, mas às vezes o terror e o sobrenatural invadem o campo de sua narrativa. Veste seus personagens de uma roupagem ridícula, sob o disfarce de uma ironia eciana. Muitas vezes o humor toma conta das narrativas, e nesse particular lembra Machado de Assis.
Nilto se exercita mais no coloquial, na literatura de cunho social, de pesquisa, por vezes de natureza histórica, como é exemplo Os Luzeiros do Mundo, título saído da boca de um personagem: Lucas, sem qualquer dúvida, o mais rico e singular que aparece em nossa moderna ficção.
O picaresco é a vertente referencial de Os Luzeiros do Mundo, este também se encontra na maioria de suas obras, como em Os Varões de Palma, de que Os Luzeiros é uma réplica, claro, enriquecida de outros aspectos. Isso tem nome: chama-se desdobramento, ou ainda, se quisermos, a intenção do autor de tornar sua obra cíclica.
Nilto Maciel é um veterano das letras, com um grande elenco de livros editados, considerado pela crítica um mestre da arte de escrever, e pode, portanto, fazer o que bem quiser de suas estórias: montá-las, desmontá-las, tal o domínio que exerce sobre sua escritura.
Difícil ao leitor a preferência, a escolha, deste ou daquele livro. Em todos se mostra com seu estilo próprio, sua linguagem nova, sua técnica narrativa, seu discurso literário que não se confunde com ninguém.
A obra está dividida em três partes, bem sistematizada, como de resto acontece aos textos do autor. Ele sabe como começar e terminar uma estória. No caso de Os Luzeiros do Mundo, jamais passaria pela cabeça do leitor que o romance acabasse “sem fim”. Nilto reservou para este uma bela surpresa, espécie de farra, de orgia, onde os espectadores aplaudem de pé, sem saber por que fazem, tontos de tanta estripulia, como acontece a uma peça de teatro no último ato.
Os Luzeiros do Mundo é um grande romance e foi talvez, por isso, que Ronaldo Cagiano, um dos críticos mais lúcidos de nosso tempo, diz na contracapa:
“O discurso literário de Nilto Maciel contrapõe-se às fórmulas perfeitas e acabadas, ao lugar-comum, às soluções estilísticas digeríveis, muito comum numa certa corrente em voga nas contemporâneas produções. O autor, em seu ofício, retrabalha mundos, recompõe a caleidoscópica semântica do inconsciente, junta os cacos de um vitral e permeia os labirintos da memória social”.
Autores ainda identificados com a moderna literatura brasileira não deixariam por menos, ao colocarem Nilto Maciel entre os intelectuais mais importantes de nossas letras.
Os Luzeiros tem muito de fábula, apesar de sua atualidade. Tudo parece ao mesmo tempo real e irreal, principalmente o personagem representado por Lucas Thaumaturgo, sonhador e missivista, que sozinho vale por todo o livro; um sujeito esquisito, exótico, singular, mergulhado na história e nos clássicos. Lucas, um poeta apaixonado, a fazer cartas ininterruptamente para a estrangeira Leonora Teles, sua amada, e para todo mundo. Mas não nos esqueçamos que o irrequieto Dom Juan tem o coração dividido. Outras mulheres entram em sua vida.
O romance de Nilto Maciel abrange tudo, fiel ao título. A política, os partidos políticos, o juiz, o prefeito, o médico, o sacerdote estão presentes. Não faltam nem mesmo os intrigantes coronéis a exercer o poder com mão de ferro sobre a pacata comunidade de Palma. São pessoas influentes que mandam e desmandam.
O lugar tem características marcantes, muito fortes, representadas pela sociedade interiorana, que se opõe aos reveses impostos pelos poderosos. É uma luta desigual, mas é uma luta. Os sicários do poder por vezes sentem-se acossados pelo povo.
Nesse clima caótico e heterogêneo, Lucas Thaumaturgo encontra a morte. “Leonora, a portuguesinha, havia se apaixonado por um nobre austríaco. Não podia mais esconder a verdade. Lucas a perdoasse e não lhe escrevesse mais.
Lida e relida a despedida, já chegada a noite, ele se pôs a rabiscar uma carta. Ao fim de cinco folhas, restava sua mais esplêndida manifestação de amor por ela, numa prosa recheada de versos de Camões.
A carta não chegou a ser postada. A madrugada o achou morto.”
O enredo se passa numa época de transformações sociais. O integralismo e o comunismo estão em ascensão. O caldeirão político ferve, e entre os habitantes de Palma espalha-se a discórdia e o terror.
Na terceira parte entram novos personagens, e o ambiente se torna ainda mais tumultuoso.
Criador de mundos e inventor de mitos, Nilto Maciel nos dá um belo romance, diferente e estranho, mas coerente em tudo com sua trajetória literária, na unidade e na estrutura de sua inventiva.
(Revista Literatura n. 30, Fortaleza, CE, set/dez, 2005)
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