Há livros que pedem uma leitura cuidadosa, há os que pedem uma leitura intelectual, consciente de cada instrumento utilizado, investigativa, crítica, cujas pretensões transcendem a do divertimento, a do entretenimento, na melhor acepção que essa palavra possa vir a ter. E há livros que pedem, além dessas peculiaridades apontadas, uma outra nuance, que não surge em importância numa plenitude de novidade, mas sim numa esfera que seja capaz de unir cuidado, atenção, recursos comparativos que busquem na tradição literária seus motivos de concepção e trabalho, e mais que tudo isso, algo raro hoje em dia: sensibilidade. A obra de Nilto Maciel pede de seus leitores esses quesitos: que apareçam em maior ou menor grau, mas devem existir para que uma leitura minimamente abrangente dele se faça. É obra de artista. Trabalho de ourives, seja na linguagem ou na tessitura do(s) enredo(s).
Pescoço de Girafa na Poeira (Bárbara Bela Editora Gráfica – Brasília – 1999), livro de contos de Nilto Maciel, traz em suas histórias um fio tênue que divide o real do sonho, a fantasia da realidade, o simbólico do literal, fazendo com que estes cenários, aparentemente dicotômicos, misturem-se, tragam um algo de novo, que nos arrebata pela estrutura, pela linguagem e pela história, que se conta ou não se conta, através de enredos ambientados no corriqueiro ou em personagens históricos, que compõem nosso universo intelectual, religioso, sócio-cultural.
Numa época na qual a crítica literária se volta tanto para o leitor, na qual teorias do efeito estético pululam nas Universidades, atenção à linguagem, dinâmica, na qual os discursos direto e indireto se misturam, trazendo aos leitores uma cumplicidade na qual o dito pacto ficcional (tomar mentira como verdade) transcende a barreira da conquista da verossimilhança. As vozes que narram fazem mais que nos contar, parecem, em muitos momentos, revelar-nos segredos, íntimos, caros para quem os conta: assim, fazem-se valiosos para quem os escuta (lê).
Comum é a sensação da presença do argentino Jorge Luís Borges, mestre da arte da narrativa breve, principalmente no que diz respeito a seu conto "O Episódio do Inimigo", famoso por dialogar a esfera onírica com a da realidade. Nesta obra do argentino, o narrador diz ter acordado para se livrar da situação de tensão na qual se encontrava, estratégia utilizada por Nilto Maciel em peças como "A Idéia de Matar Pilatos", "Desastre sobre o Labirinto de Creta" e "As Infinitas Pernas de Wellington", dentre outros. Porém, mais do que usar essa forma explícita de aproximar as duas esferas, a penumbra dos sonhos está viva na maioria das páginas. Talvez porque o inusitado de algumas situações as afaste do facilmente concebível como real, e se assim o for, mais um mérito para a prosa de Maciel, que possui olhar perspicaz o suficiente para fazer de sua arte lente de aumento capaz de nos revelar uma outra verdade dentro da verdade logicamente concebível, acrescentando ao seu leitor uma outra opção, um outro repertório com o qual possa lidar com a passagem do tempo, dos dias.
O sonho é tema recorrente, um dos núcleos temáticos, um dos valores que lhe confere unidade. Sonhos da noite, sonhos do dia. Sonhos que se sonham acordado. É fácil conceber que a história de Fátima, heroína da narrativa que dá título ao livro, seja um sonho de moça ingênua que dorme, ou um sonho de moça igualmente ingênua que sonha acordada, como Ruggero Figini, herói de "Lampião à Italiana", que tinha sonhos de fama no sentido comum da palavra, de quem almeja, busca o objeto sonhado. A repetição da vida dos personagens nos sonhos também é tema reentrante, e aí, nesse ponto, vemos uma exploração talvez psicanalítica da questão, na qual os sonhos são os espaços para a realização de desejos, para o enfrentamento de temores, de frustrações. A filiação a Borges também se faz visível no estilo utilizado para a concepção das peças em que surgem citações, nomes de livros e autores, referências históricas e erudição, bem como é marca no argentino.
Com certeza, Guido Bezerra Mocho, jornalista que protagoniza o último conto do livro, gostaria de ler Pescoço de Girafa na Poeira, pois mesmo sem ter intimidade com literatura, seu desprendimento e criatividade fariam dele figura sagaz para se ver cúmplice de suas frases curtas, sua objetividade que não abre mão de lirismo, tramas sem piedade, modernidade que açambarca a erudição, e beleza, viva para ser sonho, forte para ser realidade.
(Jornal Opção, Goiânia, GO, 23/29/julho/2006, e Revista Literatura nº 32, maio/outubro/2006)
*Carlos Augusto Silva faz bacharelado em Literatura pela Universidade Federal de Goiás
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