Escrever literatura em um país que “quase” não lê literatura é uma tarefa árdua. Muitos ficam pelo caminho. Outros entram na miragem do deserto literário e jamais retornam. Escrever é padecer de suas palavras. Escrever não é um dom, mas um trabalho em que poucos são destacados e muitos são crucificados.
Uma vez perguntei a um professor de literatura o que era conto. A resposta? “Tudo o que você quiser chamar de conto”. Estranhei a mesma, mas, na época, eu ainda era muito jovem e havia começado a ler os modernistas. O mesmo havia dito que os meus poemas eram fragmentados e que não tinham peso literário. Ri e dei as costas. Cada filho, por mais feio que seja, é amplamente amado. E é deste amor que nasce a dança simbólica de Luciano Bonfim. Já o tinha retratado em “Beber Água é Tomar Banho por Dentro”, excelente livro de poemas. Agora, nesta outra obra sua, “Dançando com Sapatos que Incomodam”, pude constatar que Luciano irrompeu as barreiras da literatura, especificamente do conto.
Quando falamos em contos, imaginamos textos com mais de seis páginas, imagens, linhas temporais, células dramáticas, etc. Não, nada disso se pode esperar de Luciano, mesmo porque os contos não estão na sua fôrma, mas na alma. Luciano teve a coragem de se sobrepor ao clássico e recriar, em linguagem própria, os seus próprios métodos textuais. Não direi experimental, pois tudo, por mais experimental que seja, tem o seu valor literário. Entretanto, em um destaque a parte, o autor foi extremamente inventivo e condensado. Um livro de contos que possui apenas 50 páginas e 29 micro-contos é um romper de barreiras e formas.
“Dançando com Sapatos que Incomodam” é um livro cheio de símbolos e imagens. Provindo da literatura Cearense, retrata de forma clara e direta muitos dos problemas sociais e familiares do Nordeste, como a seca, os duros dias das famílias pobres e a falta de emprego, principiando pelo título do livro. Ao folhear suas páginas encontram-se pedras e terra em contos como “Sina”: “...as caminhadas até o poço atrás de água...” ou “...a fome, a ida pra roça levando o “de comer” e o “de beber ” para os trabalhadores...” ou em passagens como: “... Meus irmãos, Dagoberto e Felismino, quiseram conhecer outras faces não tão secas... outras lastimações...”.
Distorcendo as linguagens formais, clássicas, dos contos tradicionais, o autor optou por estar mais perto da realidade dos fatos, aguçando os ouvidos dos leitores com diálogos onde a regionalidade, muitas vezes, permeia suas passagens, como lemos em “Na Brevidade Das Fugas”: “...vai morrer feladaputa! “Fez arrumação” de partir pra mim. Antes de ele se levantar lhe plantei três facadas...”. Entretanto, além do social e da vida dura no chão do nordeste, mais diretas e desmascaradas, Luciano consegue incluir em muitos contos pensamentos mais filosóficos, que fogem do social e criam um ar transcendente nos textos: “Existem mundos destruídos pela imensa vontade de os preservarmos” ou “Toda prisão é dentro da liberdade”, também voltada à questão social (livres, mas presos na realidade dura da região onde sobrevivem).
“Dançando com Sapatos que Incomodam” é um livro misto de dor, alegrias, subjetivismos e, em alguns momentos, de poesia. Luciano não só se revela um crítico social, denunciador, mas um contista subjetivista e escultor, que talha os padrões normais, recriando tudo a sua maneira, a seu olhar; é um livro que denuncia, sonha e faz literatura, subjetividade do mundo.
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Luciano Bonfim é graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará, e professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú. Publicou: Janeiros Sentimentos Poéticos – poemas; Beber Água é Tomar Banho por Dentro - poemas. Tem conto no Almanaque de Contos Cearenses (ed. Bagaço, 1997) e na revista Caos Portátil (2005 e 2006). Escreveu para o teatro “As Mulheres Cegas” (premiado no Festival de Teatro Amador de Acopiara-Ce/2000), Auto do menino Encantado e O Jabuti e o Gigante (premiado no Concurso Domingos Olímpio de Literatura - 2005).
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