Ligaram da Santa Casa de Misericórdia de Itapeva. Que fossem buscar o corpo do Pai. Ele tinha morrido de madrugada, na véspera do dia em que iria ter alta médica. Ligaram e o mundo desmoronou. Estava morto o Pai: morremos um pouco também naquela hora. Deveríamos arrumar um carro com um amigo da família. O corpo do Pai músico estava inerte para sempre. O irmão caçula chamou logo um táxi. Romperam-se as lágrimas e uma saudade ainda não tocada. Minha irmã mais velha, Erzita, chefiou a operação de resgate e pranto e dor. E esperamos para velar o corpo.
Quando o corpo chegou caiu uma chuva torrencial. Ficamos ilhados entre o corpo e uma angústia amarga, dolorosa, na alma entrevada. Os parentes, os amigos, os músicos e os cantores membros do coral que o Pai regia, mais aquela tempestade generalizada. Velamos o Pai sem estarmos inteiros ainda. A longa noite, a mais longa das noites, cânticos, prantos, desmanches e orações. Aquela noite triste de Itapeva ainda trago comigo, como se a primeira fundação de um vazio enorme. De vez em quando se irrompe, assoma-se em meus poemas e tristices. O dia amanheceu com um sol estranho. À hora de levarem o corpo do Pai, uma enorme chuva despencou do céu. Mesmo assim fomos levá-lo para o cemitério de Itapeva. E plantamos o corpo do Pai na vermelha terra molhada. Triste voltamos para casa sem o corpo. Eu e o Paulo, as irmãs e as imagens revisitadas de dor. Nunca mais o som do acordeão vermelho no crepúsculo do dia. Nem hinos avulsos, nem conversas fiadas, nem a risada inteirinha do Pai que nos abraçava demoradamente com seus ombros largos, os longos braços. A mãe quis voltar para Itararé. Mas havia ainda aquele corpo em nossas memórias murchas, machucadas, fazendo vulto. O corpo fora embora mais o Pai parecia ainda resistir ali, de alguma maneira inexplicável. O dia em que se perde um Pai parece que dura a eternidade inteira. E voltamos, como volta a memória de um tempo revisitado em ausências... Ainda hoje quando ganho um prêmio, quando termino um curso, ou realizo alguma coisa importante em minha vida, aponto silenciosamente o troféu ou o diploma ou a escritura de posse para o alto. E dedico ao meu Pai, e então, dizem, o meu corpo inteiro como se resplandece; como se o meu espírito estivesse ligado numa tomada de força e luz infinital. Tento realizar meu sonho, que é também o sonho impossível do Pai em mim. O corpo dele, a imagem dele, a lembrança dele, tudo é um enorme encorajamento de idéias, muito além do mundo real. Quantas vezes me pego pensando nele. O corpo, os olhos claros dele; era meu ídolo e tinha um talento enorme. Sou ainda aquele corpo em mim, em meu mundo de criações e fantasias, em meu reino solitário de poemas. Sou feito de ausências e vestígios de ausências. Quando finalmente chegar a minha vez, e ligarem para alguém ir resgatar meu corpo, finalmente estarei junto do meu Pai de novo. Na morte reside o mistério de todos os Reencontros daqueles que se amam. Quando os corpos misturam-se à terra, as almas se encontram no céu.
/////