Sentado na cadeira que pertenceu a várias gerações da família, faço o inventário de minha vida. O que fiz com ela? Percorri os caminhos que deveria, ou preferi atalhos? Aos noventa anos, já não tenho como modificar meus traçados, equívocos, rezas tortas...
Sozinho, miro o firmamento. O ser humano envelhece, se encarquilha, mas, se não houver a mão do homem, os cenários da natureza nunca se desfiguram.
Gosto do vinho branco seco. Me traz paz à alma.
Meus filhos já se foram. Triste foi a morte da mais novinha, Mariazinha da Conceição, que a tuberculose levou. Coloquei nela uma roupa branca com véu cobrindo o rosto, e um terço entre as mãos. Nunca mais consegui sorrir como antes. Meu riso ficou preso.
A mulher envelheceu antes do tempo, foi murchando, sequer notou a ida dos filhos. Sofri a dor da morte dos cinco, enquanto ela ia se encolhendo na cama, me deixando só. Uma tarde, sorriu , olhou para o teto suspirando e morreu. Nem senti falta, porque, na verdade, ela já havia morrido há trinta anos.
Fiquei neste casarão sozinho. Não gosto de estranhos, nem preciso que cuidem de mim, pois tenho pernas e braços. Monto a cavalo, cozinho, lavo e passo. Empregado é pra cuidar dos bichos, da terra e do trabalho pesado da casa.
Cheguei a pensar numa nova companheira, mas desisti. Nasci pra ser só. Não gosto de vozerios, confusões, e as pessoas sempre trazem essas coisas.
Os vizinhos moram longe. De quando em vez, recebo visita. Trazem compotas de frutas, vinhos, pão de aveia. Não gosto de desfeitear, e aceito, mas digo que visita não pode passar de meia hora.
O que a vida ainda quer de mim?
Rasguei todas as fotos que havia por aqui. Quem ficaria com elas após minha morte? Não tenho herdeiros, os vizinhos acham pecado queimar lembranças, e as fotos, dizem que têm alma... Já doei todos os objetos de valor para a igreja. Meu maior apego é com aquele Sagrado Coração de Jesus em louça que tenho na parede da sala. Ainda não sei o que fazer com a casa. Tenho tempo pra pensar. Leio muito bem, nenhum problema pra enxergar, nunca fui a médico, tenho uma saúde de ferro, mas um dia virá o sono eterno. Para onde vou? Como será a morte? Penso que acordarei no céu, vendo meus cinco filhos, mas por conta do que Conchita me fez, peço a Deus Todo Poderoso que me livre dela na outra vida. Que continue encolhida no além...
Vou tomar uma tacinha de vinho pra me ajudar a dormir. Os fantasmas às vezes aparecem e me tiram o sono. Nunca matei ninguém, apenas dei ordens. Cada cabra safado que encontrei na vida !.. Chegaram a matar dois de meus filhos. Dei idéia para queimarem eles. Sobrou só pó. Ri e joguei no charco. Quem sabe eles agora cismaram?
Deixa isso pra lá! Tô velho demais pra me preocupar com esses assuntos.
Não sei por que ainda estou por aqui. Acordo, fico o dia todo olhando a paisagem, como, escuto rádio, ponho uns discos que já estão chiando de tão velhos... Que cansaço anda batendo em mim ao cair da tarde! Me enrosco nas cobertas e vou dormir.
São cinco horas e ainda há sol. Vou tomar meu vinhozinho branco, ler meu livro de rezas, depois dormir na santa paz.
Nunca gostei de vinho tinto, por me lembrar sangue.
Que canseira me deu de repente, que sonolência estranha... Sinto frio, arrepios. Meus olhos se embaçam, pareço ver vultos, mas nunca tive problema de visão...
Estilhaços de garrafas e taças compunham o cenário final do inventário daquele homem.
____________*Belvedere Bruno é cronista, reside em Niterói. Colunista dos jornais Lig e Santa Rosa. Divulgadora cultural
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