Deve ser irresistível, para biógrafos, dispor de uma personalidade como a de Marcel Proust para cavar, aprofundar e revolver. Nos últimos anos, algumas biografias novas saíram. Tive acesso a duas, suponho que as mais notadas em livrarias – “A pomba apunhalada”, de Pietro Citati (Companhia das Letras), e “Marcel Proust”, de Edmund White (Objetiva). Mas, Proust falou tão bem e tão fundo de si que nenhum biógrafo pode ser mais interessante que ele mesmo, fazendo ficção, o foi. Só mesmo com uma arte literária aproximada à ficção pode-se fazer justiça a ele. O livro de Citati tenta isso.
Já o livro de White parece representar uma tendência meio perniciosa a considerar. White se detém sobre a homossexualidade do escritor. O autor está à vontade no campo da biografia de escritores homossexuais: já escreveu uma de Jean Genet e, nesse “Marcel Proust”, lembra que Genet teria se inspirado em “À sombra das raparigas em flor” para escrever “Nossa Senhora das Flores”. O “santo” marginal de Sartre encontrara o volume da “Busca...” negligenciado por outros prisioneiros, num dia de leitura na cadeia.
Entretanto, no abismo social e mesmo estético que certamente há entre esses dois, Edmund White não se detém. Teria que explicar mais coisas. Supor que a predileção sexual aproxima e cimenta mundos sociais e culturais irreconciliáveis é uma das ingenuidades (ou demagogias) favoritas da militância. Entre homossexuais ricos e pobres, de classe média e mendigos, há diferenças tão atrozes quanto as que pode haver entre heterossexuais de classes diferentes. A homossexualidade não torna ninguém sublime ou mais sensível ou qualquer dessas balelas com que se tenta vender uma aura de “povo eleito”. Aliás, esta tentativa de impingir santidade à preferência sexual, por oprimida, é que torna a arenga das militâncias homossexuais tão chata e restrita.
Proust não é tão bem visto pela cultura “gay”, que costuma rotulá-lo entre os “enrustidos” e sombrios, daqueles que não abriram mão do pessimismo nem baratearam o sofrimento que a questão envolve. Paira aí, ainda, o mesmo equívoco que tornava difícil a relação de Proust com André Gide – sabe-se que este, militante da beleza e da nobreza do homossexualismo, não se conformava com Proust não ser um “assumido”.
Mas, se Proust fosse dado a militâncias e a apologias de guetos sexuais, “Em busca do tempo perdido” não seria o livro universal que é.
Pouco importa que a figura que inspirou a namorada do narrador, Albertine, tenha sido Alfred Agostinelli, chofer do escritor. Para a arte literária, o que conta é talento e abrangência humana. A vida pessoal do autor é apenas matéria-prima indiferente a ser trabalhada por um talento maior ou menor.
A estratégia de Proust para falar de seu amor por Agostinelli – transformá-lo na atrevida e furtivamente libertina Albertine, que o narrador conhece em meio a outras garotas “ousadas” no balneário de Balbec – é investigada por White. Proust a teria tornado uma moça pouco convencional, com tendências lésbicas, para – segundo ele – poder projetar no personagem os ciúmes que sentia de seu amado chofer.
É discutível. Um escritor de talento pode fazer uso deste de maneiras bem menos automáticas, no intuito de esconder uma posição socialmente difícil. Na posição ontológica de que desfruta, um criador é uma alma que se difunde sobre sua criação, dotando-a desta e daquela sexualidade com maior ou menor sucesso. A alma “turva” de algum michê homossexual de rua pode muito bem estar disponível para a compreensão de um escritor convictamente heterossexual de talento, que pode incorporá-la, digamos. Um homossexual igualmente convicto pode entender perfeitamente – e transpor – o que sente um homem apaixonado por uma mulher bela e arredia. Proust dá exemplos disso na paixão de Swann por Odette, profundamente veraz e incômoda, e inteiramente heterossexual. Para criadores verdadeiros, a fronteira sexual é nada.
Proust parecia muitíssimo mais interessado era na ambigüidade generalizada de seus personagens – como se o tempo todo nada pudesse ficar definido e decidido a respeito de ninguém, e isto não apenas no tocante a preferências sexuais, mas em questões de classe, gostos artísticos e mundanos, psicologia, política, guerra e tudo de que seu grande romance se ocupa. Era como se, por fidelidade a uma visão muito porosa, múltipla, atordoante, fragmentária, do mundo, ele incluísse a homossexualidade entre as surpresas que nos podem vir da revelação das fundas e imprevistas camadas que cada personagem carregaria em si.
Ao abordar a psicologia do amor – nele incluído o amor do barão de Charlus pelo mau-caráter Morel – ninguém acertou tanto quanto ele. Para ele, essencialmente, amor é malogro, um investimento cego num ideal a que o inspirador deste nunca corresponde. A maldição do amor sem reciprocidade atravessa todos os sete volumes da “Busca...”. É preciso muita coragem intelectual para conviver com a lucidez proustiana – ele acha que o amor é como doença, como febre estritamente subjetiva sem poder de contagiar o objeto de desejo ou adoração. Se mergulharem devidamente em Proust, os “gays” militantes podem sair desapontados. Assim como saem desapontadas de uma leitura dessas os de preferência sexual mais convencional. A dubiedade é generalizada. E não é culpa de Proust. O ser humano é ambíguo e isso não pode ser alterado.
É notório que, no desejo de defender a sensibilidade “gay”, o estudioso homossexual de autores notoriamente “comprometidos” force para que se encontre, por todos os lados, provas da premissa com que, digamos, foi a campo. É a razão daquela visão bobinha do mundo em que praticamente não há lugar para o gosto heterossexual nos homens – ou se é “gay” ou se é enrustido. Funciona como se qualquer negação de um pendor “gay” por parte de uma figura masculina, por lógica perversa, abrigasse o seu contrário. Não ocorre ao estudioso que o erro pode estar nele, que pode estar tomado por sua predileção de tal modo que não seja mais capaz de enxergar nada um pouco menos fácil no perímetro de sua “perspicácia” obsessiva, redundante.
Proust, que conseguia pairar muito acima dessas vulgaridades, por seu talento, observa que a amizade masculina, quando desprovida de interesses “turvos”, quando existe, é das coisas mais altruístas, belas e misteriosas desse mundo. Naturalmente, ela existe – se toda amizade estivesse a priori contaminada pelo desejo erótico, de uma espécie socialmente reconhecida ou amaldiçoada, se tudo se reduzisse à libido, a alma humana seria, inevitavelmente, uma paisagem de uma pobreza desoladora demais.
White se detém nos “casos” que ele teve. Com o músico Reynaldo Hahn, com Jacques Bizet, com Antoine Bibesco, com Lucien Daudet, com Bertrand de Fenelon, com Agostinelli, com um garçom do Ritz e finalmente com um sueco que descreve meio como um protótipo de “garanhão” escandinavo.
Observação digna de nota de White é esta: à medida que Proust vai trocando seus namorados artistas por homens mais comuns, trabalhadores e heterossexuais, o sofrimento aumenta. Como muitos homossexuais, Proust quer arrebatar o difícil – melhor, impossível – amor dos “homens de verdade”. É uma obsessão que o deixa infeliz e ávido de afetividades que só podem ser compradas na moeda da má-fé. Não conhecemos tantos homossexuais assim? Eruditos, refinados, mergulham na abjeção dos banheiros públicos ou pagam a algum sujeito bonito e estúpido para que durmam com eles, forçando patética e tristemente para que a coisa se assemelhe a afeto. O homossexual refinado parece desejar sempre o macho não-entendido, mas bem se sabe que “um homem de verdade é aquele que ama mulheres de verdade”, como suspira o lírico Molina de Manuel Puig em “O beijo da mulher-aranha”.
Proust dramatiza essa rejeição e, por seu talento, consegue universalizá-la. É perito em detectar as precariedades de todo sonho romântico.
Edmund Wilson, em “O castelo de Axel”, tem uma opinião menos ortodoxa sobre a sua sexualidade. Wilson achava que o escritor era menos um homossexual convicto que um heterossexual ressentido e destaca a beleza, a arte, a precisão com que descreve as mulheres enquanto, ao pintar personagens homossexuais masculinos, revela vícios, defeitos morais e apetites sórdidos que os tornam grotescos. Pode-se alegar que aí Wilson estaria “puxando” o escritor para seu lado, querendo que fosse heterossexual. Mas, sua opinião ao menos faz pensar com uma dose menor de acomodação intelectual.
Facilitação para todos os gostos e “ghettos”
Um monumento como “Em busca do tempo perdido”, hoje em domínio público, tinha que ser absorvido pelos muitos usos que a indústria cultural procura fazer daquilo que é universalmente admirado: há um livro inglês usando as idéias de Proust numa espécie de manual de auto-ajuda, e o “Em busca...” também foi transformado em história em quadrinhos, numa “facilitação” que arrancou protestos dos puristas.
Estúpido brigar com coisas assim num mundo onde tudo se vende. É inevitável esse uso, e tão inevitável quanto haver milhares de Edmund Whites querendo que o escritor se ajuste a um figurino sexual, porque é muito honroso para a comunidade “gay” ter um artista dessa estatura entre os que podem ser citados como exemplos do “martírio da sensibilidade alternativa” ou coisa do gênero.
Proust é um senhor alimento para a inteligência e a sensibilidade para todo mundo, mais que um manancial de fofocas para “Juquinhas” invertidos. O maior dos alimentos, de fato. Ao lê-lo e entendê-lo, sentimo-nos mais inteligentes, mais vivos. Talvez nunca vá servir de exemplo moral para nada – porque gênios artísticos, com suas vidas particularmente problemáticas, estão muito acima dessa obsessão mesquinha e sectária por modelos, por esquemas “politicamente corretos”, pertençam estes a códigos oficiais ou marginais.
Por que erguê-lo como santo ou vilão desta ou daquela preferência sexual? Era um homem desconcertante, pela honestidade minuciosa e implacável com que via os amigos, a sociedade, o mundo, mas também a si mesmo – nunca se excluiu, como objeto, de seu vertiginoso talento para tudo desmistificar. Teve uma vida atormentada e contraditória como poucas. Só conta para o admirador, no entanto, o fato inegável de que soube transfigurá-la em beleza. É o maior – na verdade, o único – exemplo que se deve dar, como escritor.
* Chico Lopes publicou “Nó de sombras” (contos, IMS/SP, 2000) e “Dobras da noite” (contos, IMS/SP, 2004).
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